Sobre o bem e o mal
Herlen é um bem-humorado
curitibano que mora no estado do Acre desde a sua infância. Tem lembranças
amargas do colégio, pois sempre estava acima do peso e os seus colegas o
nomeavam com diversos apelidos infames para uma criança suportar como elefante
ou rolha de poço. Estudioso, colecionava medalhas de ouro devido excelentes
notas e boletins que enchiam de orgulho seus pais. Filho único, sempre desejou
ter vários irmãos e, se possível, um gêmeo. Não teve dificuldades para passar
no vestibular para Engenharia Elétrica, ficou em terceiro lugar. Os dois
primeiros lugares eram gênios também, Alex e Pedro. Fez logo amizade com ambos
e se tornaram irmãos de verdade. Relacionamento profícuo que alimentava os
saberes da nova profissão vindoura. Costumeiramente, se reuniam para conversar
sobre os mais diversos assuntos afetivos e segredos, algumas vezes,
perturbadores.
Raquel morava em Lima,
capital do Peru desde seu nascimento, pois sua mãe sofreu um acidente aéreo,
quando o avião estava pousando no aeroporto da cidade matando toda a tripulação
e alguns passageiros. Estava grávida de sete meses e acompanhava o marido em
uma de suas inúmeras viagens para esta capital proveniente de Salvador, sua
terra natal. Apresentava uma gestação de alto risco que o seu obstetra orientou,
por diversas vezes, a evitar esforços desnecessários, incluindo, viagens aéreas.
Em alguns momentos, Raquel perguntava-se por que sua mãe insistia em viajar mesmo
com as advertências médicas. Quem contava estes detalhes para ela era a sua tia
Núbia que tentava preservá-la de outros acontecimentos do passado, relacionado
aos seus pais, que poderiam abalar o mundo de Raquel como a existência de uma
amante em Lima que era o motivo das diversas idas do seu pai para a capital
peruana. Sua mãe, tentando preservar o casamento, insistia em estar ao lado,
continuamente, do seu pai, na tentativa de frustrar o encontro dos enamorados
mesmo colocando em risco a gravidez como da sua própria vida.
Alex, que se tornou
amigo de Pedro e Herlen na faculdade de Engenharia Elétrica, era um jovem que enfrentava
a depressão há dois anos antes do vestibular. Supõe-se que o estresse da
cobrança dos seus pais para passar na prova foi um desencadeador do processo.
Sua família já sofria com esta doença devido o seu pai, alcoólatra, que desenvolveu
depressão grave a ponto de ser internado por meses em clínicas psiquiátricas.
Certa vez, ainda adolescente, ouviu alguns especialistas em um simpósio sobre
saúde mental que achavam absurdo uma pessoa ser internada nestas clínicas
psiquiátricas ou hospitais. Referiam que a família deveria permanecer com o
doente, pois é importante a socialização e o contato constante com a família
mesmo em uma fase psicótica quando o paciente perde a consciência dos seus atos
e agride pessoas, quebra objetos de forma a pôr em risco sua vida e de outras
pessoas. Alex ficou estupefato com o escárnio que aquelas pessoas proferiam. Elas
não sabem como é difícil uma família ver um ente querido se tornar um sujeito
agressivo, inconsequente dos seus atos em casa em meio a um pânico avassalador.
É necessário potentes medicações injetáveis e vários dias de internamento para
existir a possibilidade de volta ao convívio social e familiar. Alex e sua
família já eram testemunhas de um sistema de saúde que não prioriza seus
pacientes psiquiátricos sem local para internar adequadamente quando
necessário. Ouvira falar sobre uma luta antimanicomial que foi a causa da
diminuição dos leitos para os pacientes psicóticos agudos. Não entendia como
alguma pessoa em sã consciência poderia ser contra as vagas em hospitais
psiquiátricos para estas pessoas que estão sofrendo, gritando, correndo pelas
ruas nus, sem pudor, capazes de matar e de tentar o suicídio.
Pedro nunca pensou em
se casar. Com vinte e dois anos de idade, era decidido a manter um namoro para
sempre com Rebeca. Ela sugerira o casamento por diversas vezes, mas ele foi
decisivo em procrastinar este noivado. Algumas pessoas achavam muito estranho
este relacionamento, pois ela, habitualmente, aparecia com o olho roxo, chorando
pelos cantos e evitando se expor publicamente para que não notassem as feridas
físicas e espirituais decorrentes das brigas com Pedro. Certa vez, após uma
discussão barulhenta, ela decidiu acabar com o seu enlace com Pedro. Foi uma
tragédia na vida destas duas pessoas. Ela contou para seus pais e todos os seus
amigos o que acontecia no namoro. Ele a espancava por qualquer motivo. Foi o
primeiro namorado dela e não conseguia se afastar muito tempo dele já que o
amava demais. Escondia este sofrimento de todos para que ninguém se
intrometesse no seu relacionamento causando mais dor e angústia. Por sete anos ela
suportou este martírio, desde os dezesseis anos de idade.
·
Herlen se transformou
em um dos mais brilhantes alunos que a faculdade já teve. Antes de concluir o
curso, já fora convidado a ser um dos professores da universidade. Como era
necessário ter um doutorado que servia de pré-requisito para lecionar, foi
permitido preparar sua tese em paralelo com o trabalho como um virtuoso mestre.
Assíduo em seus compromissos era motivo de orgulho do corpo docente desta
entidade. Era, frequentemente, convidado para ser o paraninfo das turmas de
formando que se despediam todos os anos. Seu relacionamento com Pedro e Alex
também sofreu mudanças. Alex que no início era um brilhante aluno piorou seu
rendimento a ponto de ter que repetir uma cadeira. Algumas vezes, Herlen
procurava chamar Alex para ir a algum bar para tomar uma cerveja, mas não sabia
como, Alex odiava bebida alcoólica por causa do seu pai e isto afastava o
convívio de ambos. Pedro sempre acompanhava Herlen. Os dois se preocupavam com
Alex que era motivo de longas conversas.
Raquel começou a
praticar pequenos furtos para sair com as suas amigas. Sabia que a sua tia não
tinha dinheiro para comprar roupas, sapatos, joias e ingressos para shows ou entrada para boates. Precisava
estar sempre bem vestida e pronta para viajar ou estourar o cartão de crédito
em qualquer visita a um shopping. Os
primeiros furtos foram dentro da sua própria casa e sua tia percebeu.
Aconselhou Raquel a não seguir este comportamento cleptomaníaco. Em certo
momento, ela foi expulsa de casa. O mundo, então, a abusou e ela se entregou
por completo. Se transformou em uma vendedora de drogas e se enveredou na
prostituição. Durante o dia, dormia. Usava crack
no desjejum após as três horas da tarde. Mandou matar e matou muitos que
ousaram não pagar pelas drogas. Espancou muitas jovens que tentavam sair da
prostituição. Organizou e conseguiu dinheiro para assaltos a carros-fortes e,
posteriormente, a caixas eletrônicos com dinamites furtadas de uma mineradora.
Não conseguia frear seus impulsos, seus pensamentos sobre si mesma, eram
confusos. A única certeza que ela acreditava era que, somente, conseguiria
parar com este comportamento ensandecido se algo disruptivo acontecesse. Um
tiro no abdome e outro na coluna conseguiram este intento.
Alex começou a
participar de mutirões para arrecadar fundos, roupas, mantimentos para a
construção e manutenção de algumas clínicas de reabilitação para drogados. Sentia
a necessidade de ajudar estas pessoas carentes de afetividade e, a maioria, de
recursos financeiros já que não conseguiam trabalhar. Se identificava consigo.
A face triste, sem o brilho nos olhos eram muito familiares e, de certa forma,
traziam conforto. Não que fosse sadista, mas não era incomum os diversos
relatos estapafúrdios sobre vidas de famílias destruídas pelas drogas ou
doenças psíquicas. Foi se tornando um nome reconhecido pelo seu altruísmo e
dedicação. Muitos vinham buscar ajuda, comida, dinheiro, uma amizade ou
conselho. Sentia que poderia ajudar mais se fosse vereador de sua cidade. Desta
forma, seria mais fácil conseguir recursos para estas clínicas psiquiátricas e
ajudar a aperfeiçoar o modelo de saúde mental desta cidade. Participou de um
sufrágio que ficou como suplente. Aprendeu como é difícil conseguir votos de
forma honesta, pelo voto ideológico. Decepcionou-se com diversas pessoas que tinha
ajudado e que se prontificaram em apoiá-lo na campanha, mas que trabalharam e
votaram em outro candidato por um milheiro de tijolo ou por uma nota de
cinquenta reais. Algumas agradáveis surpresas como pessoas que o ajudaram e
trabalharam, voluntariamente, mesmo sem nunca ter feito nada por estas pessoas,
simplesmente, por que acreditava nas propostas dele. Depois de um tempo
afastado dos seus amigos dos tempos da faculdade, marcou um encontro em sua
casa com ambos e voltaram a repetir os encontros semanalmente.
Pedro inconformado com
o fim do seu relacionamento com Rebeca havia cinco anos, não parava de tramar
uma vingança contra a sua ex. A morte era um fim na maioria dos seus planos.
Começou a investigar todos os lugares frequentados por ela. Sabia a hora de
chegada e saída do trabalho e todo o trajeto percorrido de sua casa até a
academia. Como não tinha tempo para ficar monitorando, contratou um detetive
para poder fazer este serviço, queria informes diários. Até que um dia, mesmo
temeroso, o detetive descreve uma saída de Rebeca com um outro homem para um
jantar em um restaurante e, depois, ela o convida para passar a noite no seu
apartamento. Por breves segundos, Pedro fica sem palavras, ausência de mente e
espírito. Pega uma arma que ficava guardada em uma caixa de sapato debaixo da
cama e sai decidido a pôr um fim a este relacionamento. Matará a Rebeca e este
safado que ousou tocar nela. Sai disparado em sua moto pelas ruas da cidade,
cortando carros, ultrapassando sinais vermelhos. Não ouviu quando um policial
pediu para parar em uma blitz.
Iniciou-se uma perseguição sem que ele notasse, seu objetivo estava a poucas
quadras dali. Quando, de repente, cai da moto. Passou um tempo desacordado e,
lentamente, procurava entender o acontecido. Olha em volta e observa os
transeuntes e curiosos tentando ajudá-lo. Uma ambulância do SAMU chega e uma
das enfermeiras se aproxima para saber como ele está e prepara a sua remoção.
Ela explica que um cachorro passou na rua correndo e foi atropelado pela moto
dele. Pedro pede para ver o cachorro. Ele está agonizando no meio da rua sem
ninguém para socorrer. A enfermeira e o médico insistem para que ele permaneça
deitado para poder providenciar a remoção para um hospital de trauma mais
próximo. Não está sentindo a clavícula esquerda quebrada e diversos arranhões nas
costas e nos seus membros. Almeja salvar a vida daquele cachorro. Ele é tomado
por uma compaixão nunca antes sentida. A polícia também quer prendê-lo. Herlen,
ao saber do ocorrido, chega ao local do acidente para saber como está seu
amigo. Pedro fica muito feliz quando reconhece o seu amigo e explica que ele
precisa salvar aquele cachorro. Precisava levá-lo para um hospital veterinário
imediatamente. Se houver despesas, ele arcará com tudo e assim fez Herlen.
·
Herlen está aguardando
o diagnóstico do veterinário para aquele cachorro que o seu amigo Pedro
confiou. Está apreensivo, amava os animais. Sai um pouco para deambular na
calçada do Hospital para relaxar. Um menino de, aproximadamente dez anos, pede
esmola para ele. Subitamente, Herlen é tomado por uma estimulante sensação
estranha ao ver aquela criança. Olha em volta para saber se alguém está
observando. Pergunta o nome do garoto, se está acompanhado de alguém. Oferece
para o infante dinheiro e almoço na condição de acompanhá-lo para o seu
apartamento. Uma longa conversa se inicia com risadas e suaves toques no rosto
do infante que responde com receio, cabeça baixa. Herlen deixa-o aguardando em
uma lanchonete próxima comendo um sanduíche e um refrigerante enquanto volta
para averiguar a situação do cachorro. O veterinário afirma que irá sobreviver.
Precisou de uma cirurgia para conter um sangramento abdominal devido contusão
grave do fígado. Herlen deixa tudo pago e avisa para Pedro das condições do seu
cachorro e tudo que está sendo feito para salvá-lo. Na verdade, Herlen está
ansioso para levar aquele moleque para seu apartamento e gozar até não poder
mais consigo como há anos ele vinha fazendo com outras meninas e meninos que
passavam por suas mãos.
Raquel estava internada
em um hospital público há duas semanas. Não conseguia parar de chorar. A dor
que sentia era imensa. Não movimentava as suas pernas. Os médicos explicaram
que a sua coluna foi afetada por um dos projéteis. Sentia falta das drogas que
consumia regularmente e, em alguns momentos, teve convulsões e delírios por
causa da abstinência. Períodos de desespero e angústia. Suas lembranças e
pensamentos estavam desconexos. Uma profunda tristeza invadia seu espírito. Era
incapaz de imaginar uma solução para o seu presente. Passava o dia todo calada,
sem conversar com ninguém. Algumas respostas monossilábicas para o médico que a
visitava diariamente. Certa vez, ao observar um semblante ameno e feliz de uma
senhora que estava limpando o seu quarto despertou sua atenção. Algumas vezes,
era capaz de ouvir o canto sutil que saía dos lábios da funcionária encarregada
da limpeza do andar do hospital. A presença desta pessoa trazia paz de certa
forma, não sabia explicar. Insinuou umas palavras para chamar a atenção daquela
mulher que se apresentava com uma paz inesperada para aquele coração aflito.
Iniciou-se uma amizade que permaneceu após a alta da Raquel do hospital. A
funcionária, nos dias de folga, acompanhava Raquel na fisioterapia, retornos
para consulta com os médicos e, parcimoniosamente, Raquel foi compreendendo a
necessidade da presença de Deus na vida dela estimulada pela sua nova colega.
Começou a frequentar a igreja da sua amiga e participar de cursos bíblicos.
Ajudar os mais necessitados virou sua missão de vida e, como apresentava uma
oratória que contagiava as outras pessoas, logo foi iniciado o processo para prepará-la
para ser pastora. Sempre testemunhava sobre a sua vida. Tudo o que passou até
estar ali, em cima do púlpito, em uma cadeira de rodas servindo a Deus era,
minuciosamente, relatado para todos que estivessem preparados para ouvir.
Alex estabeleceu uma
meta para a próxima campanha eleitoral, juntar dinheiro suficiente para a compra
de votos e propaganda para conseguir aumentar suas chances para vereador. Aumentou
seu trabalho junto com as comunidades mais carentes procurando ajudá-las e guiá-las
nas suas demandas e denúncias para melhorias das suas condições de vida. Havia
muitas pessoas que o apoiavam. Seus aliados aceitavam a necessidade da compra de
voto de outras pessoas para conseguir o objetivo que seria bom para todos os
cidadãos daquela cidade. A corrupção naquele momento seria com um objetivo
justificado para ajudar outras pessoas. Sua consciência ardia em chamas ao
pensar neste ato inescrupuloso em conseguir seu intento, mas a necessidade de
ajudar os cidadãos suplantava o malefício da desonestidade, pensava.
Pedro adotou aquele
cachorro nomeado puffy e passou a dedicar sua vida à proteção dos animais. O
que aconteceu com o puffy era uma realidade nas estradas e ruas das cidades com
seus animais abandonados. Criou uma ONG para a defesa da fauna e pagava uma
mensalidade mensal para o Greenpeace. Pensou
em fazer Medicina Veterinária para se entregar de corpo e alma nesta sua nova
esperança. Conheceu sua atual esposa em um dos inúmeros resgastes de animais
presos vivendo em precárias condições com seus donos que maltratavam,
espancavam diariamente. Preferiram não ter filhos, pois criavam em casa sete
cachorros e vinte e sete gatos encontrados na rua.
·
Herlen, Raquel, Alex e Pedro são ótimas pessoas e
más ao mesmo tempo. Existem pessoas que os respeitam, enquanto que outros
tiveram suas vidas destruídas pelas suas ações. Comportamentos amorais
entremeados em cidadãos e cidadãs que passeiam pelas ruas da cidade incólumes. São
mais de 7 bilhões de seres humanos vivendo em momentos diferentes, alguns em
pleno gozo de saúde, enquanto que outros estão condenados por doenças terminais.
Empresários que empregam milhares de colaboradores, mas que precisam pagar
propinas para não serem prejudicados pelos fiscais do município. A mãe de família
que permite fornicar com o chefe do seu trabalho para não perder seu emprego, o
único sustento da sua morada. Anjos e demônios travestidos de seres humanos. O
próximo é um risco inopino de vida e amá-lo é uma atitude Divina no campo do
sobrenatural e irracional no natural.
03.05.18