domingo, 29 de abril de 2018

Conto - Desculpas

— Não beberei mais – apresentando uma convicção que transparecia uma beldade mitológica, um deus com d minúsculo da coerência.
— Não beberei mais e digo mais, não beberei desta bebida dispendiosa e infeliz, falava referindo à cerveja quente ingerida no estádio de futebol, pois alguns comerciantes preferem ouvir as lamúrias dos seus clientes quanto a temperatura inadequada das ampolas de cevada do que amargar um prejuízo de estocar no freezer, vários engradados e serem esquecidos pelos torcedores infiéis.
Neste momento, Sérgio invoca uma sabedoria questionada e violenta pela sua complexidade hepática:
— A partir de hoje somente irei voltar a ingerir bebida alcoólica por um motivo extremamente importante, salutar e, se tiver que beber mesmo, que seja cachaça pela sua elegância, pureza em exprimir os nossos valores cearenses.
Sérgio se permitiu enlouquecer e dizer pensamentos absortos que a experiência benfazeja dos anos, insiste em nos presentear. Muito provável que preferia cachaça porque era mais barata. Existe, realmente, um vasto campo de estudo da bebida fermentada a partir da cana-de-açúcar e ele sabia disso. Em vez de ler mais sobre o assunto, viajar para alambiques pelos Estados brasileiros, como Minas Gerais, preferia, simplesmente, beber o que pudesse e pronto!
- A cachaça não é uma bebida alcoólica – continuava Sérgio - é uma seiva aromada da cana-de-açúcar que nos permite o deleite de conduzir uma conversação. Se Jerusalém fosse situada na cidade de Redenção, a Bíblia Sagrada teria sido reescrita: Acarape, Aracoiaba, Pacatuba teriam sido citadas por passagens dos apóstolos e a aguardente seria consagrada em vez do vinho – bem, são conjecturas que não quero enveredar – finalizava.
E assim, Sérgio desfilava razões para continuar o seu deleite pelo alcoolismo que devastava a sua vida e a da sua família. Todo dia, ele encontrava uma razão descosturada da realidade para tragar mais uma dose percebida pela vasta maioria de fugazes conhecidos, esparsos amigos e impessoais familiares que tentavam persuadi-lo de abandonar esta caverna de horrores inebriantes. A dura vida vivida era regada com um manancial de goles de qualquer tipo de bebida – o que determinava era o dinheiro disponível na carteira ou no crédito, cada vez mais raro, que tinha dos donos de estabelecimentos. Sérgio ainda mantinha conta em caderninho o que muitos consideravam uma excelência da antiguidade boêmia – o famoso pendura. É muita moral um indivíduo encher a cara e depois gritar, do outro lado do estabelecimento, —  pendura aí, depois eu pago. Algumas vezes, era o único jeito que o dono do bar tinha de agir, já que o honroso devedor ia pagando o montante da dívida em partes, e como nunca finalizava, tinha que continuar mantendo a permanência diária deste tipo de cliente queima o filme e, deveras, chato. Se ousasse não encher o copo de cana do cliente com contas a pagar, este simplesmente, iria se aventurar nas ruas escuras e fétidas atrás de outro boteco que começasse a encher o seu papo com cana e sofresse um novo processo de calote em curto prazo.
— Tenho uma saúde de ferro, com um pouco de ferrugem aqui e outro ali – gabava-se Sérgio – e isso era verdade. Por mais que chegasse tarde em casa depois de tanta bebida, às 5h15 estava em pé trabalhando firme como o asfalto das estradas cearenses – onde basta um mormaço para florescer buracos. Apenas a cabeça que doía muito, quando olhava para os lados, latejando como a queda de um prato a dez metros altura em cima do crânio, e uma vontade de vomitar, principalmente, quando soluçava e ele soluçava, demasiadamente, quando se acordava após estas inebriantes farras.— Essa ressaca tá diferente, sussurrava. Fora esta sensação de farnizim que se  assemelhava como um grito de morte que se instalava em seu corpo, desnecessariamente, quando tomava seus porres constantes, o resto da sua saúde era de ferro; desconsiderando a espinhela caída desde moço – traço genético familiar; um joelho inchado há cinco anos depois que deu uma joelhada na quina de uma mesa pessimamente instalada em uma sala escura. Vale uma nota deste episódio: Não entendeu como algum mentecapto poderia ter posicionado uma arma tão nociva como a ponta de uma mesa de centro na altura da bolacha do joelho de um homem de estatura mediana, bêbado e sem enxergar nada devido não conseguir ligar o interruptor da luz. Muito provável que um irresponsável instalou um interruptor em um lugar que um bêbado desmiolado tem dificuldade de raciocinar – na parede.  
    Desculpas e mais desculpas para continuar vivendo uma vida infeliz. Algemas, correntes, prendem Sérgio ao seu vício. Não consegue identificar o vício como o causador da sua débil saúde, casamento esfacelado, faltando quinze dias para ser demitido já que está cumprindo o aviso prévio que a empresa solicitou. Desculpas até quando não puder mais. Algumas pessoas podem, também, não concordar que o vício do álcool seja a causa do seu infortúnio, quem sabe? Em um mundo de possibilidades, algumas vezes, mentiras e verdades, realidades e  mitos se misturam e mudam os conceitos do que é normal e patológico. Algumas vezes, precisamos decidir qual rumo seguir, tomar decisões que tem de ser feitas. Neste caso, se o nó para ser desatado que ajudasse a resolver a vida de Sérgio for o alcoolismo, que assuma a doença e busque alternativas para resolvê-lo sem desculpas ou mentirinhas.
    Qual a decisão de Sérgio? Continuar curtindo a vida ou parar, absolutamente, a ingestão de álcool? Precisa suspender, totalmente, ou pode ficar tomando pequenas doses esporádicas e aproveitar a euforia momentânea? A melhor resposta seria: tá tranquilo, cada um tem a vida que merece!

01.10.16
Faz parte da Antologia do CCC - 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário