domingo, 29 de abril de 2018

Conto - Inesperado

Sempre é bom ouvir boas notícias, poderia ser uma constante. Sentir sempre paz, animado, tudo dando certo é um sonho magnífico. De repente, surge algo que abala nossa convicção de um mundo ideal só de alegria e gozo. Acontecem tribulações, imprevistos, acidentes e temos que começar a nos recuperar para voltar a tranquilidade. A vida de Sérgio também é assim – desta forma podemos perceber que ele é uma pessoa normal. O que faríamos com um sucesso sucedendo um atrás de outro ininterruptamente$ Não que a idéia da felicidade perene seja desagradável, apenas não é conhecido um experiência real de uma pessoa que tenha vivido sempre em alegria.
Consideração sobre a obrigatoriedade de existir tribulações -  o que é bom para alguém pode ser ruim para outro e vice-versa, se não, vejamos: uma nota de cem reais pode causar tristeza ou alegria – tristeza de quem perdeu e alegria de quem ganhou. Ainda há outra possibilidade: quem encontrou a nota de cem reais pode se sentir com a obrigação de devolvê-la, já que não pertence a ela e, sim, a outra pessoa. A sensação de realizar o que é certo, segundo o que ela acredita, a preenche com uma sensação de dever cumprido e para quem recebe, um resgate, um lucro de algo que havia se perdido. Portanto, dependendo de nossas atitudes, para um mesmo acontecimento pode haver tristeza ou alegria, satisfação e justiça.
É necessário esclarecer que o conceito de felicidade pode variar de pessoa a pessoa. Alguns vivem felizes com um salário mínimo todo mês, outros não e ainda reclamam que deveriam estar recebendo mais; alguns são felizes com a família completa, outros não e ainda esbravejam que os filhos são vagabundos; alguns se alegram com o almoço servido, outros não e ainda reclamam que a comida está fria.
O que tem a haver Sérgio com isso$ Ele não está preocupado em debater sobre os questionamentos existenciais que são, filosoficamente, gerados , à forceps, em quartos frios e sem graça. Para ele, basta estar vivo e conseguir o sustento para a casa. O nosso personagem ensaia algumas vezes a liberdade de opinar sobre quaisquer assuntos que ele tenha assistido na televisão. Algumas vezes, também cita  outras fontes de informação: as outras pessoas. Sim, os outros , especificamente, fulano ou beltrano e seus amigos em conversas no trabalho, no caminho para casa no ônibos cheio ou no jogo de dominó às terça e quinta-feiras. Desta forma, toda a memória de Sérgio é tomada de vários notícias que lhe são repassadas desde problemais conjugais até política. É muita informação!
Nosso personagem é um homem respeitado na rua onde mora, nunca se envolveu com brigas, sempre está atento para ouvir alguma reclamação de um vizinho e nunca queimou o lixo de casa formando toda aquela fumaça chata que ataca os pulmões e rinites de todos como o vizinho, do outro lado da rua, da casa 37, costuma fazer toda vez que o carro do lixo demora passar e acumula todo tipo de imundície no muro ao lado.
De repente, o mundo ruiu na cabeça de Sérgio. Assim que ele chega em casa, só encontra fumaça e restos do que já foi a sua moradia, restou nada. Não conseguiu ficar ansioso para encontrar algo, pois havia um vazio absoluto. Os vizinhos correram para lhe contar que, quando começou o incêncio, arrombaram a porta da casa para tentar apagar o fogo, mas muitos aproveitaram para levar os pertences da sua casa que estavam intactos. Ele já não entendia o que diziam: ouvia, mas não escutava, gesticulavam a esmo em sua frente. O tudo virou um nada! As sirenes da polícia, corpo de bombeiros gritavam avisando da presença das autoridades. As conversas paralelas dos curiosos enchiam de amargura o peito vazio. O passado insistia em trazer todas as reformas dos quartos, o dia e a hora da aquisição de cada eletrodoméstico, as contas de água, luz, boletos de pagamento do ventilador de teto e do jogo de cadeiras da sala – algumas pagas e outras a se vencer. Sérgio lutava para definir estratégias para decidir o que fazer, mas não conseguia. Tentava lembrar do local de cada móvel da casa, a posição da mesa, se a TV e a luz da sala estavam ligados ou desligados – mas ,não mais importava, repetia e repetia tentando se auto convencer do ocorrido.
Começa a sentir, suavemente, o tocar de mãos em seus ombros e algumas vozes, não consegue reconhecer de quem são. Permite-se sentar em um banco improvisado em frente da casa do vizinho de 37. Aceita um copo de água que insistem em lhe oferecer. O líquido desce como lama intolerante, vomita tudo. Vomita o choro que feria seu estômago e agora arde em seus olhos. As lágrimas limpam todo o seu presente insípido e triste.   A força da chuva do pranto evidencia um espírito que clama por ajuda. A sua casa destruida é o ocaso da sua redenção. A casa de um homem é uma âncora do navio da vida, sem ela, fica à deriva. Nesse passeio inesperado pelo ocaso do desespero, surgem elementos desconhecidos no caminho. Nesse mar revolto sem um norte, a esperança é permanecer vivo. Pensar no futuro alvoroça ainda mais o presente e chama de volta o passado. Ele se agarra nas memórias felizes para justificar o presente. Não consegue acessar o futuro, ele não existe. Ele tem que continuar a vaguear nesta vida, mas não consegue mais andar sem o passado. O passado agora é o seu amigo, o mantém conectado com a sua vida de outrora. O presente lhe traz angústia, raiva, preguiça, fome, alcool, crack, prostituição, surras, vomitos, sujeira, mas o passado o faz lembrar, dormir. O futuro se  atrofiou na sua mente e o passado é muito poderoso e presente. É como um tirano imbatível com seus exércitos de milhares de soldados sedentos por sangue. Em uma ditadura atroz, o sucesso é sobreviver de todo o modo, é a grande revolução.
E como um mantra do seu apocalipse, um coro de vozes que brotam do abismo da sua existência preenche o seu presente: Não é necessário mais sobreviver, desnecessário é viver!
Faz parte so Livro Faz do Conto III - 2018

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