terça-feira, 30 de julho de 2024

O SACA-ROLHAS E A GARRAFA DE VINHO

Em uma casa viviam vários seres animados e inanimados. Dentre os objetos que não deveriam expressar sentimentos, existiam alguns que não sabiam pensar, conjecturar e ousar e o faziam mesmo assim. Os diversos instrumentos da casa eram utilizados em diferentes momentos pelos seres animados ou vivos, poderíamos assim dizer, a depender do período em que se encontravam de um ano ou de um singelo dia. Dentre estes se destacavam o saca-rolhas, as garrafas de vinho e um filtro de água.

Indubitavelmente, o saca-rolhas gostava do seu trabalho: após pedir permissão atropeladamente, subitamente, já estava transfixando a rolha e expulsando-a de uma garrafa que escravizava o vinho. O saca-rolhas sentia-se como um libertador, um herói, ainda que não soubesse a definição deste ato.

Certa vez, em um dia mais ensolarado, ao libertar mais um vinho das garras da escravidão de uma rolha opressora, o saca-rolhas procurou conversar com o vinho que se apresentava à sua frente trazendo alegria, ora tristeza para os seres animados que insistiam em ingerir ou escravizá-los em seus corpos.

Saca-rolhas: Olá, depois de tanto tempo libertando seres como você, gostaria, por obséquio, de conhecê-los melhor.

Vinho tinto: Não me importo em descrever-me para ti. Sou um vinho tinto derivado das uvas desta região. Tenho um sabor apurado, mas existem aqueles que rejeitam o meu toque. Posso causar euforia e iniciar grandes paixões, assim como posso ser o prelúdio de uma tragédia. Tenho o poder da sedução e da beleza oculta nas diversas notas que emergem do meu ser.

O saca-rolhas ficou embevecido com tamanhas palavras cheias de vigor e certezas. Seus olhos brilhavam ao se abrir um mundo de possibilidades e encantos com aquelas sentenças que demostravam uma dureza amenizada por um charme adocicado.

Saca-rolhas: Fale mais sobre ti, tens família?

Vinho tinto: Família? Tenho, mas não tenho. Tenho alguns irmãos como o vinho branco, espumante e um bastardo vinho verde. Temos a mesma essência, mas por vários motivos precisamos nos diferenciar para conquistar diferentes paladares. Nasci primeiro e servi de exemplo para os outros. Sou vendido como um presente dos deuses, trago a alegria imediata e a descontração absoluta. Estimulo orgias, brigas e desconstruções. Apesar de todo o peso das consequências dos meus atos, existem milhões que ainda me defendem. Se braço tivesse, arrancaria as penas de uma galinha e ela ainda viria comer o milho nas minhas mãos. Se arma pudesse carregar, mataria aqueles que pensam contra mim. Seria o defensor da liberdade de todos e prenderia quem fosse contra. Ajudo a destruir os conceitos que orientam o mundo a nossa volta. A família, a nação, propriedade privada, a fé em um Deus são conceitos que atrapalham a minha marcha para uma transformação da sociedade. Somente consigo enganar os fracos de espírito, jovens que ainda não tiveram a oportunidade de viver uma vida de desafios e conquistas por mérito. Consigo ludibriar as pessoas de que o mais importante é o agora e que, portanto, não vale a pena construir. Construir é cansativo, mais gostoso é destruir. A adrenalina das pessoas fica à flor da pele quando sorvem o meu néctar. Inquestionavelmente, sou viciante. Como vício, tem as consequências, mas não precisamos falar sobre isto porque o que importa é o agora. Começo a ser apresentado nas escolas e tenho meu apogeu nas faculdades. Cada vez mais que as famílias não conseguem estar ao lado dos seus filhos, mas entro nas realidades dos jovens o que me ajuda a perpetuar a minha existência.

O saca-rolhas continuava perplexo com tanta agitação e beleza. Por ficar a maior parte do tempo dentro de uma gaveta, não conseguia imaginar tantas cores e convulsões possíveis em um discurso tão magnânimo. Era um momento deveras alegre.

Neste momento, a garrafa foi levada para o outro compartimento da casa. O saca-rolhas não veria mais o seu furtivo amigo para continuar a sua conversa. Gostou desta nova possibilidade de poder dialogar e ouvir as experiências e a magia entremeada nas incontáveis frases ditas ao vento. Cada vez mais, se empolgava para retirar as rolhas que prendiam estes seres tão maravilhosos para aprender mais.

Até que um dia, o saca-rolhas percebeu que há semanas não saía da gaveta. Algumas vezes, observava que algum outro utensílio era retirado próximo a ele. Nunca mais teve o prazer de perfurar uma rolha e tagarelar com aqueles líquidos tão maravilhosos. De repente, ele foi retirado e jogado em uma pia que ficava no meio da cozinha da casa. Em sua volta, algumas colheres e facas que não sabiam o que tinha acontecido. Este cenário ficou estável por dias até que o saca-rolhas sentindo-se entediado, busca iniciar um bate papo com as coisas que estavam quietas e imóveis. Ninguém responde.

Após uma semana, começa crescer uma sensação ruim a tal ponto que começaram a escorrer umas gotas que pareciam água da ponta do seu cabo. Ao ouvir o choro do saca-rolhas, o filtro de água que não conseguia mais ficar calado pergunta:

Filtro de água: O que aconteceu?

O saca-rolhas ouviu a indagação, mas ainda estava triste demais para responder, então o filtro de água retrucou:

Filtro de água: Percebi que você está chorando. Entendo que se você não quiser conversar, posso deixar você em paz. De qualquer modo, estarei aqui se você desejar contar um pouco o que está acontecendo.

Passaram dias, semanas e, finalmente, o saca-rolhas não aguentando, arremessou uma palavra quase inaudível:

Saca-rolhas: ...Oi!

O filtro de água, percebendo a timidez do saca-rolhas, responde em um tom ameno.

Filtro de água: Olá! Como tu estás? Ficou calada tanto tempo, imaginei que tu estavas mergulhada nos teus pensamentos e, por isto, não quis incomodar.

Saca-rolhas: Você fala palavras tão bonitas também.

Filtro de água: Eu? Obrigado! E quem falava palavras bonitas também?

Saca-rolhas: O vinho, principalmente, o tinto.

Filtro de água: Ah, o vinho...

Neste momento, o saca-rolhas percebe uma mudança da voz do filtro de água e pergunta:

Filtro de água: Você também conhece o vinho?

Filtro de água: Bem, nunca entrou vinho dentro de mim, apenas água, mas conheço longas histórias do vinho.

O saca-rolhas neste momento, literalmente, pula de alegria caindo próximo ao filtro.

Saca-rolhas: Conte-me das estórias do vinho. Gostava muito de ouvir. Se pudesse, teria vivido todas as aventuras e glórias que ele me descrevia: revoluções, pessoas felizes, igualdade o quer que isto seja.

Filtro de água: Como te disse, somente água entrou em mim. Do vinho, bem...do vinho conheço como começa cada história com alegria, sensação de renovação, muita paixão, mas o fim sempre é trágico.

Saca-rolhas: O que é trágico?

Filtro de água: Trágico é quando acontece algo ruim.

Saca-rolhas: É ficar triste depois de estar feliz?

Filtro de água: Isso mesmo.

Saca-rolhas: Fiquei muito triste depois que deixei de tirar rolhas e salvar o vinho que ficava preso na garrafa. Sempre o vinho conversava comigo, contando maravilhas que aconteciam quando bebiam dele.

Filtro de água: Pois é, difícil de falar sobre isto para você.

Saca-rolhas: Por quê?

Filtro de água: Como você tem boas lembranças dele, não imagina quanta dor ele pode trazer. Você teria que estar preparado para escutar o lado trágico do vinho e tirar suas decisões depois. Não quero estragar os teus sonhos.

Saca-rolhas: Conte-me tudo, não sabia que poderiam existir este lado trágico do vinho.

Filtro de água: No começo, o vinho é bom, agradável. Ao passar do tempo, ele exige mais tempo e consome a pessoa. O indivíduo não consegue trabalhar, precisa viver de favor das outras pessoas consumindo seu tempo. O vinho ensina que as pessoas que têm dinheiro e posses são más e que deveriam doar tudo para os que não trabalham. O vinho estimula o roubo para que as pessoas possam ter como comprar mais vinho. O vinho destrói a pessoa e toda a comunidade onde ele entra.

Saca-rolhas: Que triste!

Filtro de água: Existe alguém que ajuda a combater a maldade do vinho, principalmente o tinto, que é a água. Esta mesma que ficava em mim e que ajudava a saciar a sede das pessoas sem exigir ou causar dor nelas. As pessoas que ingerem do vinho, sempre tem que recorrer à água para curar das feridas causadas pelo consumo. Infelizmente, a maioria das pessoas voltam a consumir o vinho de tempos em tempos esquecendo todo o mal que este pensamento causou na humanidade ao longo da história. Aliás, foi por causa do vinho que o dono desta casa perdeu tudo, restando somente nós nesta casa abandonada sem perspectivas do futuro.

O saca-rolhas ficava olhando o filtro falar, mas com um olhar vago sem entender o que o filtro estava querendo dizer. Quando percebia que o filtro estava um pouco mais sério, pensava que seria melhor não ter tirado as rolhas da garrafa para livrar aquele ser tão trágico, mas bastava passar alguns dias e o saca-rolhas já ficava imaginando aparecer uma nova garrafa de vinho para que ele tirasse a rolha e continuasse o seu devaneio.

25.06.24

 

Transpoema - A menina (trans)formada

Mari transpira transformação.

Qualquer transeunte que transpasse o seu caminho transubstancializa-se

Permite-se transmitir a transvanguarda e questionar a transculturação.

 

A transparência da sua transitoriedade

Transverbera o trans ordinário

Transfigura os conceitos e preconceitos de verdade

Se engaja com o transumano incendiário.

 

Transfixa a parede transportada da mediocridade

Transtroca a mente perversa que transcura[AB1]  em um mar transitável de esperança

É um verbo intransitivo de uma transa sem maldade.

 

Não é sobre o prefixo “trans”, é mais para um transe suave

É a respeito e muito respeito de quem transcreve sobre a transcendência

Sobre Mari que voa no transcurso da humanidade como uma ave

É a paz de uma transfusão de amor para uma enrijecida essência.

 

24.06.24

Obs: enviado dia 30.06 para a Antologia da Sobrames-CE.