terça-feira, 21 de novembro de 2023

Fernanda Anônima

Prólogo

Ainda em choque, caminhava em ruelas desconhecidas atrás de jogar fora, aquele saco com algo ou alguém dentro. Ela estava tonta, cambaleante. O pai a acompanhava de longe. O telefone da sua casa tocava, já distante, como um grito de socorro, mas Fernanda nada percebia, nada a afetava mais. Ela não sentia medo, não tocava mais o chão, não percebia o peso de um corpo na mão. O suor da sua palidez, escorria incólume das suas costas frágeis de uma menina de 17 anos. Os cães das casas próximas ladravam como se a acusasse… E eles eram intolerantes. A dor dilacerante entre as suas pernas se revelavam pelo sangue derramado e contido pelo pano de chão encharcado do banheiro da sua casa.

Quase desfalecendo, se pergunta mais uma vez: por que isto aconteceu comigo? O delírio complacente permite que ela receba um feliz aniversário de uma frágil, pequena e pálida mão que escapa de um saco plástico, ensanguentado, que a toca em um dos seus trêmulos dedos.

Amigos

Em sua festa de aniversário de 16 anos, Fernanda está cercada com os seus melhores amigos. Amanda e André são seus colegas de infância; Madalena e Martha são suas conhecidas da igreja que frequentam. Todos estudam no mesmo colégio. Amanda costuma usar roupas escuras e perucas produzidas por ela mesma, com aspirações em ser uma maquiadora profissional. Tem um excelente convívio com a sua família, tanto que, a sua maior fã (e única!) é sua inocente irmãzinha de 5 anos! O seu quarto é um verdadeiro circo de caracteres, máscaras, retratos, roupas, tintas, apetrechos para as inúmeras possibilidades de personagens que ela adora montar e, algumas vezes, interpretar.

André imagina que ser professor de História irá permitir estudar o mundo antigo com mais serenidade e como ele interfere na sociedade contemporânea. Assim, finalmente, poderia ajudar outras pessoas a compreender a realidade que as cerca. No seu tempo livre, curte fazer drag, em outras palavras, ser uma drag queen para se expressar artisticamente pelo Instagram ou YouTube, seus meios sociais favoritos. Não pensa e nem tem tempo para se expor publicamente, é seu hobby.

Madalena está na sua fase de revolta. Após a morte da sua mãe, ela perdeu a fé em tudo e em todos. O único porto seguro, são seus amigos. As roupas que costumava usar, agora, estão rasgadas devido o ódio desproporcional ao Deus “de amor” que não deveria permitir a dor, o sofrimento e a morte. Suas antigas saias longas que não permitiam o deleite de desnudar seus tornozelos juvenis, se transformaram em minissaias. Não entendia o motivo da sua mãe, a única pessoa que a mantinha na Assembleia de Deus, ter morrido justamente enquanto falava com o seu “Pai”. Até o seu próprio pai compartilha da sua revolta. Ela consegue se confortar em estudar Matemática, porque o resultado é exato, previsível, diferentemente do abstrato desejo supremo de um Deus que define os seus destinos.

Martha é a mais séria do grupo, provavelmente, deverá seguir a advocacia, seguindo os passos de sua mãe e de seu pai. Apesar de ser, também, da Assembleia de Deus, onde conheceu Madalena, ela tem opiniões bem liberais para uma cristã tão fervorosa, como seus pais. A sua amizade com Madalena lhe trouxe um dos piores momentos da sua vida, mas, apesar de sua dor, ela compreende que não foi culpa da sua amiga.

 Dor de Madalena

Aos 8 anos de idade, Madalena era o xodó da família. Criança divertida, boas notas e comportamento escolar, exemplar. Aos poucos, começou a ficar mais reclusa, cada vez mais triste. O início da adolescência acentuou a agressividade sombreada na infância. Aos 12 anos, já falava em sexo, começava a se apaixonar por meninos e meninas de forma frequente. A agressividade com os pais foi se acentuando. Não conseguia mais abraçar ou beijar algum membro da sua família. Mesmo a ida frequente à igreja, não foi suficiente para barrar um lado sombrio que nela aflorava.

O próximo passo foi deixar de comparecer nas reuniões de jovens da igreja e nos cultos. Alegava que as palavras ditas pelo pastor ou pastora, eram preconceituosas. A igreja virou um lugar de repúdio.

Sentindo-se cada vez mais incompreendida, tentou, por diversas vezes, entender e decifrar o mundo à sua maneira. Todos os comportamentos suprimidos ao longo de anos, foram testados vigorosamente. Sexo, drogas, sem conseguir estudar ou trabalhar, sem definir um norte preciso para a sua vida, levaram ela cada vez ao fundo do poço. No meio desse caminho, muitas pessoas passaram na sua vida: uma delas foi a Martha.

Martha

Sempre a Martha foi reclusa, desde a tenra infância. Apesar de os pais sempre estimularem brincadeiras ao ar livre, ela tendeu a ficar em casa, brincando no seu quarto. No colégio, os professores avisavam aos pais de Martha, a necessidade de interagir mais com as pessoas, preocupados com o desenvolvimento social dela. Apesar de tudo, Martha teve bom desenvolvimento escolar, com poucos colegas que se relacionaram até o dia que teve que trocar de cidade, devido um novo trabalho que sua a mãe assumiu.

Em Fortaleza, seu novo domicílio, foi estudar no Colégio Cearense, localizado no Centro da capital do Ceará, próximo à Praça Coração de Jesus.

 

 

O Aniversário

Uma banda de música, que foi convidada para tocar na festa de aniversário da Fernanda, era composta por quatro integrantes, mas se sobressaía, o baixista Gabriel, para a aniversariante que não desgrudava seus olhos castanhos do músico.

A festa transcorreu de forma morna já que, alguns jovens, esperavam que fosse mais “ilegal” com álcool, drogas e, por um breve instante, como órfãos sem as limitações dos seus pais.

No outro dia, na hora do recreio, Fernanda estava sentada no chão conversando com os seus amigos quando observou ao longe, Gabriel passando no corredor. Eles trocaram olhares. Ela notou que já o conhecia, mas, somente agora, o percebeu. Ele lembra da aniversariante do dia anterior.        Ela toma coragem e vai de encontro a ele. Ele percebendo que ela se aproximava, não imaginava o que ela iria fazer, talvez, estivesse indo para outro setor do colégio, indo falar com qualquer outra pessoa fora ele. Mas o olhar dela começava a se fixar nele. A partir desse momento, inúmeros pensamentos inundaram sua mente adolescente sem ele poder controlar. Seu rosto estava pegando fogo. Ela estava ansiosa, discretamente animada, querendo passar uma sensação de segurança inexistente.

Fernanda: Oi, acho que te conheço. - começa o diálogo abrindo seu sorriso mais ainda.

Gabriel: Sim, com certeza. Foi ontem na festa do teu aniversário, estava tocando na banda. - responde o garoto sem acreditar que está conversando com uma garota tão bonita.

Fernanda: ‒ Valha, como você sabe que era o meu aniversário?

Gabriel: É, bem… Você era a única que estava usando uma coroa.

Fernanda: Oxe, quer dizer que só a aniversariante pode usar uma coroa?

Gabriel: É. - sorri.

Fernanda: Realmente, faz sentido. - fala sorrindo também.

Dessa forma, nos recreios e, somente nos recreios, eles eram permitidos aproveitar a presença um do outro a pedido da Fernanda. As semanas foram se passando, tornaram-se meses e o namoro inevitável entre os dois foi acontecendo.

Em um passeio pela Praia de Iracema, de mãos dadas, o primeiro beijo aconteceu. Viviam momentos felizes, que a juventude pode proporcionar sem preocupações sobre a burocracia que inferniza a vida das pessoas que têm família, necessidade de trabalhar para o sustento, doenças que surgem inesperadamente, algumas mortais, que requerem muito gasto de tempo e dinheiro.

Após três meses, Gabriel começa a mudar. Ele não liga mais como antes, sempre inventando desculpas, cada vez mais, para evitar estar ao lado de Fernanda. Isso começava a causar tristeza e dor nela. Os acessos de choro começavam a se tornar frequentes. Ela não consegue entender por que um namoro tão bom, poderia passar por esse horrível momento. Ela não desistia e continuava buscando a atenção do seu já, ex-namorado.

Certo dia, Gabriel, após conversar com o André sobre o que estava acontecendo, com os olhos lacrimejantes, revelou um triste fato: nunca namorava ou “ficava” por mais de três meses com alguém. Sempre começava com muita paixão, mas, sem explicação, já não tinha vontade de ver a namorada ou “ficante”. Esse comportamento existe desde a primeira vez que começou a se relacionar. André abraça o seu amigo, diz que compreende o seu sofrimento e deixa rolar uma lágrima sobre o ombro de Gabriel.

André é muito emotivo e sofre quando seus amigos estão passando por um momento difícil. Ele não gosta de influenciar as decisões das pessoas, principalmente, quando estão em sofrimento como a Fernanda. Ele chora porque poderia, por exemplo, tirar da cabeça da Fernanda a ideia dela querer voltar com o Gabriel, mas, ele considera que possa haver uma possibilidade no futuro, de o casal reatar. Nesse caso, ele não gostaria de ter sido um pária, para o relacionamento.

O mundo desabou para a Fernanda que passou dias chorando, perdendo peso, não acreditando no término do namoro. Ela tentou de tudo para conversar mais com o Gabriel, para tentar reatar o relacionamento. Aceitaria apenas “ficar” sem compromisso. Passaram-se dias, semanas nesse tormento, mas Gabriel não cedia. Ele, já chateado com a irritante perseguição, tentou falar com alguma das amigas da sua ex. Conseguiu conversar com Madalena que tinha mais proximidade.

Madalena, Martha e Gabriel

 

Madalena estava sentada em um canto da quadra central do seu colégio, onde poucas pessoas aparecem. Estava refletindo a forma estranha que Martha tem se comportado nos últimos tempos. Cada vez mais, Martha tem procurado abraçar, tocar Madalena de uma forma invasiva. Sempre, Martha procurava entrar no banheiro junto com a Madalena e presenciar sua amiga trocando de roupa ou qualquer ação que desnudasse seu corpo. Há poucas horas, Madalena gritou com a sua amiga explicando que não aguentava mais esse tipo de assédio. Martha caiu em lágrimas. Pediu desculpas e explicou que não era nada demais, e que ela gostava muito da Madalena, só isso. Madalena por sua vez, retrucou:

Como nada demais? Você está muito estranha. Fica querendo tocar nos meus seios o tempo todo, falando que as minhas calcinhas são lindas e perfumadas… Como? Você cheirou as minhas calcinhas? Você está dando em cima de mim? Somos muito amigas, mas isso está passando dos limites.

Você sabe como estou passando momentos difíceis depois da morte da minha mãe. Você está se aproveitando de mim?

Não, nunca iria te fazer mal ou magoá-la. Gosto muito de você, só isso. - respondeu Martha enxugando as suas lágrimas.

Elas se afastam, seguindo caminhos diferentes, Madalena não querendo mais falar com a Martha e, esta, procurando um meio para se reaproximar de Madalena e desfazer o mal-entendido. Nesse momento, Gabriel se encontrou com a Madalena.

          Madalena, tudo bem? Estou precisando de uma ajuda tua. - falou Gabriel sorrindo, mas notando a feição séria da Madalena.

          Estou com muitos problemas também, o que foi que aconteceu? - responde Madalena falando com a cabeça um pouco baixa, mas se levantando para tentar, pelo menos, escutar alguém, já que, não consegue entender e resolver seus próprios pesadelos.

          É sobre a tua amiga, mas, conte o que está acontecendo contigo? - responde Gabriel preocupado com Madalena.

          Ela contou tudo o que aconteceu com a Martha, tudo. Gabriel compreendeu e passou a conversar cada vez mais consigo, ele notava que quanto mais ela falava, mais relaxada ela ficava.

          Os dias passaram, Gabriel e Madalena se aproximavam cada vez mais. Eles nunca tinham se paquerado, mas a oportunidade de conversarem um com o outro, mudou a perspectiva que cada um tinha do outro. Era inevitável o relacionamento, mas não obrigatório. Madalena sentia essa aproximação e isso a incomodava. Gabriel notando a rejeição, começou a falar um pouco mais de si, inclusive, sobre o relacionamento com a Fernanda. Isso a incomodou sensivelmente, e passou a defender a volta do casal, já que ela sabia do sofrimento da sua amiga. Gabriel ficou muito chateado com Madalena.

          André entrou em contato com Gabriel também para tratar do mesmo assunto.

          Eu não quero mais namorar com a Fernanda, gosto dela, mas não a amo. O que está acontecendo? Por que essa pressão? - questionava Gabriel.

          Não quero me meter na vida pessoal de vocês… Estou, apenas, te avisando que tem uma garota muito legal que está com saudades de você, mas se já não é do teu interesse, entendo a tua decisão. - retruca André.

 

A Volta

Já se passaram seis meses do término do namoro, mas Fernanda, ainda sofria com o fim do relacionamento.

          Madalena convida seus amigos para um show que aconteceria no final de semana, com uma série de bandas de rock. Ela havia elaborado um plano para matar dois coelhos com uma cajadada só: aproximaria a Martha da Fernanda e torcer para que as duas começassem um relacionamento, dessa forma, Martha não ficaria mais chateada consigo e a Fernanda sairia da fossa que se encontrava. Ninguém sabia mais do plano.

          Depois que o plano foi revelado, após várias doses de cervejas que elas estavam tomando, houve uma grande confusão. Martha partiu para cima de Madalena tentando esbofeteá-la. Os amigos as cercaram e foi necessário o reforço dos seguranças do local para conter os ânimos. Fernanda não conseguia conter o choro.

          Gabriel, nessa noite, sente remorso de tudo que está acontecendo com a Fernanda, se aproxima dela, pede desculpas e, após breves palavras de carinho, a beija com todo calor e emoção, sentindo o rosto úmido de lágrimas copiosas que banhavam o rosto dela, e a partir desse momento, dele também.         O impulso do momento se transforma em cenas de sexo juvenil e um exame de urina se detecta, algumas semanas depois, que a Fernanda estava grávida.

          O desespero e o choro contínuo, invadem a vida de todas as pessoas envoltas desses dois novos jovens pais. Todo o tipo de conselho é dado como, fazer pré-natal cedo, como abortar ou assassinar essa criança, dependendo da ideologia de cada um. São momentos difíceis para as vidas de todos. Os amigos em volta, já não sabem o que falar, não querem mais arriscar palpites para piorar as vidas deles.

          Por fim, depois de semanas de suplício, a Fernanda começava a aceitar essa nova realidade e se preparar para o matrimônio proposto pelos pais de Gabriel e confirmado por ele.

          De repente, quando estava se preparando para tomar um banho, pois sairia com seus amigos, para comemorar o seu aniversário, percebe que começa a perder muito sangue a ponto de perder suas forças. Ela estava sozinha, sabia que tinha que procurar ajuda, ir a algum hospital, pois poderia desmaiar ou algo pior acontecer a qualquer momento.       

          Era véspera do seu aniversário de 17 anos.

Tudo Pode Piorar

          Madalena, quando soube da gravidez da Fernanda, entrou em desespero se sentindo culpada por todo o mal que estava fazendo para seus amigos. Precisava se redimir.

          A principal solução seria dar um fim àquela criança que estava no ventre da Fernanda já que estava causando tanta dor para todos, principalmente, para Fernanda. Madalena tinha remorso do encontro que ela planejou para as amigas, mas que acabou favorecendo a recaída de Gabriel e Fernanda. Madalena sabia que precisava fazer algo.

          Ela foi a única pessoa que estimulou Fernanda para abortar. Fernanda estava com muitas dúvidas sobre o assunto. Opiniões contrárias ao aborto, também existiam. Por fim, Madalena conseguiu alguns comprimidos abortivos e colocou em um suco para Fernanda. Ela não sabia do suco com a droga abortiva. A princípio não quis tomar, pois já apresentava náuseas devido a gravidez, mas Madalena insistiu que era para o bem dela e, assim, Fernanda ingeriu aquele líquido.

          Teve dificuldades para dormir, pois começou a sentir dores abdominais cada vez mais intensas além das náuseas e vômitos incoercíveis. Nas primeiras horas do dia, sentiu o líquido viscoso e quente, entre as suas pernas e ao tentar ligar a luz do quarto de forma cambaleante, percebeu um rastro de sangue que ia das suas coxas até a sua cama. Percebeu uma massa vermelha em cima da cama e, ao chegar mais perto, conseguiu notar as feições de um feto. Em um estado confuso, trôpega, procurou um saco plástico para guardar e jogar fora aquilo que ela não entendia, mas que causava dor e agonia. Sentia uma mistura de medo, desespero, desesperança, mas sabia que precisava prosseguir para esconder algo que ela não entendia. Por fim, ainda antes de desfalecer e ser levada pelo seu pai que a encontrara desmaiada em meio a uma poça de sangue, para um hospital, percebeu o único e último toque de feliz aniversário daquele que seria seu filho.

 

 

 

Obs: revisado em 31.07.23 pela Rejane e enviado para a Antologia 2023 da Sobrames em 01.08.23

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