segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

O Pior e o Melhor de Mim

     É muito difícil conviver com as pessoas que são diferentes de nós. Deveras complicado. Não somente estranho em relação aos pensamentos, ideias ou costumes, mas também, em relação ao nosso corpo. Parece que as pessoas que são mais altas, são mais bonitas, ou que têm olhos azuis e verdes são mais elegantes. Em algumas culturas, ser negro é mais bonito, em outras, ser branco ou amarelo. Complicado é quando uma pessoa apresenta alguma deficiência propriamente dita: quem usa cadeira de rodas, deficiência visual ou mesmo auditiva. Tenho a sensação de que é difícil encaixar em nosso mundo, as pessoas que têm estas diferentes nuances. Pior para mim que tenho algo a mais que ninguém tem. Alguns podem definir como maldição e outros, como uma bênção.

Talvez, estes questionamentos sejam o próprio problema: fico achando que as outras pessoas irão definir o que é o mais bonito ou o feio e eu serei avaliado desta forma. Provavelmente, estes mesmos cidadãos nem estejam me notando, estão seguindo as suas vidas com os seus desafios e somente isto. Elas devem ter os mesmos sentimentos angustiantes e banais que estou me referindo e cada um dará o devido grau de importância a estas questões.

Início

As minhas primeiras lembranças são vagas em relação a minha força elevada que causava diversos acidentes. Era muito comum alguém dizer que eu era forte, mas, de alguma forma, consegui, inconscientemente, não causar grandes danos, machucar ou mesmo matar uma pessoa. Como meus pais chamavam muito a minha atenção para que eu tivesse cuidado e não quebrasse as coisas, fui aprendendo a me controlar. Só para constar: não sou alienígena e nem fui exposto a alguma substância química ou radioativa que transformou o meu corpo a ponto de ter a força equivalente a cem homens. Nasci desta forma e esta é a minha história.

Muitas vezes, evitava brincar com as outras crianças, justamente para evitar acidentes, que diga-se de passagem, eram muito comuns. Já amassei a lataria de inúmeros carros quando jogava bola perto destes veículos. Sempre tinha que correr, porque sabia que eu era o culpado. Era considerado muito desastrado. Até hoje, este excesso do medo de quebrar as coisas, me incomoda, me limita nas minhas ações. Os pais dos meus amigos, na maioria das vezes, advertiam seus filhos para evitarem brincar comigo, porque eu era estabanado e poderia machucá-los. Eles não escondiam os seus descontentamentos na minha presença: eles desejavam que eu ouvisse, provavelmente, para que eu me afastasse dos seus rebentos e não causasse danos.

Meus pais, também, tinham este cuidado com as minhas irmãs e os objetos da casa. As minhas brincadeiras não eram adequadas para quaisquer pessoas, mesmos adultos, imagine para crianças mais novas do que eu, no caso, das minhas irmãs. Elas dormiam em um quarto separado do meu para evitar acidentes devido às brincadeiras ou brigas comuns entre irmãos. Certa vez, empurrei a minha irmã, que estava na borda da piscina, visando apenas dar um susto nela, mas não saiu como o planejado. A intenção era que ela caísse perto da borda da piscina, próximo da escada e, desta forma, ela poderia voltar para a beira da piscina de novo. Em vez disso, a força empregada foi tamanha que ela caiu na parte profunda da piscina. Ela não gritava, pois já estava se afogando. Quem gritou por ajuda fui eu que percebi logo a bobagem que fizera. Eu sabia nadar, mas fiquei paralisado sem saber o que fazer. Ainda tenho este receio de entrar em água, se for para ajudar alguém que está se afogando. Talvez tenha sido deste evento que ocorreu com a minha irmã no Clube Náutico que fica na Avenida Beira-Mar de Fortaleza, local que a gente frequentava quando a nossa tia conseguia uma cortesia para levar seus sobrinhos para passear aos finais de semana.

 Em outra oportunidade, a brincadeira, se podemos definir desta forma, era jogar sandálias um no outro e o objetivo era se esquivar como acontecia nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, quando a Mônica arremessava o seu coelhinho de pelúcia e o Cebolinha tentava desviar, ou nos desenhos animados que passavam nos programas de TV quando eram comuns jogar objetos uns nos outros, como nas brigas de gatos e ratos, Pica Pau contra o Leão Marinho. Quando a minha irmã atirou a sandália na vez dela, consegui desviar com certa facilidade, talvez ela tenha conseguido me acertar em algumas outras oportunidades. Você já pode imaginar o que aconteceu quando foi a minha vez. Ainda bem que o primeiro arremesso errei, mas iria bater na cabeça dela. A sandália quebrou-se contra a parede devido a intensidade da energia aplicada. Por causa da ingenuidade, continuamos brincando e quando joguei pela segunda vez, a sandália do outro pé, acertou na perna dela. Imediatamente, ela soltou um grito pavoroso de dor. Esta outra sandália começou a ser destruída já na perna da minha irmã e terminou seu desmonte ao colidir contra a parede. Por sorte, o projétil passou lateralizando da perna esquerda dela, abaixo do joelho. Não sei como, mas ela não quebrou nenhum osso. Em vez disso, arrancou parte da pele da perna e teve que ser levada ao pronto-socorro. Precisou ficar usando curativo por um bom tempo e tomar antibióticos que ela detestava e, na maioria das vezes, vomitava por não gostar do sabor.

Cada vez mais, meus pais ficavam preocupados, porque à medida que a minha força aumentava, os acidentes ficavam mais graves. Estava jogando bola em um calçamento no bairro Beira Rio, local que havíamos mudado recentemente, depois que os meus pais terem vivido seus primeiros anos de casados no bairro São João do Tauape próximo ao Lagamar. Em um determinado momento do jogo, chutei o chão, em vez da bola, até porque, futebol nunca foi o meu forte, despedaçando uma pedra de calçamento um pouco mais saliente, arremessando com uma enorme força e velocidade um pedaço de pedra que se tivesse pegado em alguém, com certeza, teria transfixado. O fragmento de pedra atingiu uma caixa transformadora em um poste ocasionando um grande barulho e foi este motivo que muitos não conseguiram associar o acidente ao meu chute. Desta vez, comecei a ficar mais preocupado e já entendia que seria mais sensato me afastar das pessoas para evitar maiores transtornos.

Adultez

Seria esperado que eu me tornasse um super-herói ou mesmo que tivesse utilizado este dom, ou poder em benefício próprio. Em vez disso, escondi por este tempo. Não consigo compreender ter algo que é diferente totalmente da humanidade lá fora. Sem lógica para mim. Como irei explicar? Com quem poderei debater sobre o meu dia a dia? Ninguém pode entender. Irei me transformar em um deus para a maioria deles e isto não desejo. Não me sinto à vontade de ser superior somente devido a um dom.

Sei que muitas pessoas são idolatradas devido algumas características, mas o meu caso é diferente. Algumas pessoas são aclamadas, porque são cantoras, mas, na maioria das vezes, se não emplacarem sucessos seguidos, caem no esquecimento. Outros, são grandemente ovacionados, porque são grandes jogadores de algum esporte, mas em breves anos se aposentam sendo esquecidos gradativamente. Por outro lado, eu sempre serei poderoso.

Prefiro a paz da minha consciência. Não quero parecer soberbo, acima de ninguém. Acredito que este excesso de força foi indevidamente colocado sob a minha responsabilidade ou, quiçá, fui deliberadamente sorteado para guardar este precioso dom. Talvez Deus ou qualquer outra força superior, soubessem qual seria o meu comportamento e quisessem esconder este poder da mão de qualquer outra pessoa na Terra.

Sempre estou avaliando os meus comportamentos ou pensamentos. Posso estar equivocado em tudo o que penso. Porventura, posso decidir usar esta minha força para salvar alguém, e pronto, ou fazer shows demonstrando feitos nunca realizados pelo homem, como a capacidade de levantar um caminhão acima da cabeça, usando apenas a força de um ser humano. Não sei o que pode acontecer daqui para frente que mude os meus ideais. Acredito que a humildade possa ser uma característica minha que pode estar inibindo de usufruir deste talento. A minha prudência pode estar se questionando se este excesso de força é algo positivo ou negativo para a minha vida. É melhor evitar ter filhos que possam herdar esta mutação, pois não desejo que ninguém sofra. Não sei precisar como será a minha atitude no futuro como já mencionara, mas a decisão de saber se agi corretamente ou não, dependerá de quando for avaliado ou por quem.

Algumas perguntas ficam sem respostas mesmo. Até agora, o ser humano concluiu ser importante formular perguntar e tentar responder. Pois é, tentar responder e, algumas vezes, a resposta que serviu perfeitamente, inicialmente, encontra-se equivocada nas diversas esquinas do tempo. No meio do relativismo, ainda podemos nos questionar se sabemos perguntar. Este é um dos questionamentos mais intrigantes da raça humana vigente. Talvez se a gente conseguir ultrapassar algumas destas respostas, poderemos nos sobrelevar como espécie animal, supra sapiens, com o desenvolvimento de características sobre-humanas, impensáveis até este momento. Presentemente, o meu dom poderia, talvez, ser útil e, por enquanto, fico apenas como um rei deposto que tem um olho em uma terra de cegos.

 

24.01.2024

Nenhum comentário:

Postar um comentário