É muito difícil conviver com as pessoas que são diferentes de nós. Deveras complicado. Não somente estranho em relação aos pensamentos, ideias ou costumes, mas também, em relação ao nosso corpo. Parece que as pessoas que são mais altas, são mais bonitas, ou que têm olhos azuis e verdes são mais elegantes. Em algumas culturas, ser negro é mais bonito, em outras, ser branco ou amarelo. Complicado é quando uma pessoa apresenta alguma deficiência propriamente dita: quem usa cadeira de rodas, deficiência visual ou mesmo auditiva. Tenho a sensação de que é difícil encaixar em nosso mundo, as pessoas que têm estas diferentes nuances. Pior para mim que tenho algo a mais que ninguém tem. Alguns podem definir como maldição e outros, como uma bênção.
Talvez, estes
questionamentos sejam o próprio problema: fico achando que
as outras pessoas irão definir o que é o mais bonito ou o feio e eu serei avaliado
desta forma. Provavelmente, estes mesmos cidadãos nem estejam me notando, estão
seguindo as suas vidas com os seus desafios e somente isto. Elas devem ter os
mesmos sentimentos angustiantes e banais que estou me referindo e cada um dará
o devido grau de importância a estas questões.
Início
As minhas primeiras lembranças são vagas em
relação a minha força elevada que causava diversos acidentes. Era muito comum
alguém dizer que eu era forte, mas, de alguma forma, consegui,
inconscientemente, não causar grandes danos, machucar ou mesmo matar uma
pessoa. Como meus pais chamavam muito a minha atenção para que eu tivesse
cuidado e não quebrasse as coisas, fui aprendendo a me controlar. Só para
constar: não sou alienígena e nem fui exposto a alguma substância química ou
radioativa que transformou o meu corpo a ponto de ter a força equivalente a cem
homens. Nasci desta forma e esta é a minha história.
Muitas vezes, evitava brincar com as outras
crianças, justamente para evitar acidentes, que diga-se de passagem, eram muito
comuns. Já amassei a lataria de inúmeros carros quando jogava bola perto destes
veículos. Sempre tinha que correr, porque sabia que eu era o culpado. Era
considerado muito desastrado. Até hoje, este excesso do medo de quebrar as
coisas, me incomoda, me limita nas minhas ações. Os pais dos meus amigos, na
maioria das vezes, advertiam seus filhos para evitarem brincar comigo, porque eu
era estabanado e poderia machucá-los. Eles não escondiam os seus
descontentamentos na minha presença: eles desejavam que eu ouvisse,
provavelmente, para que eu me afastasse dos seus rebentos e não causasse danos.
Meus pais, também, tinham este cuidado com as
minhas irmãs e os objetos da casa. As minhas brincadeiras não eram adequadas
para quaisquer pessoas, mesmos adultos, imagine para crianças mais novas do que
eu, no caso, das minhas irmãs. Elas dormiam em um quarto separado do meu para
evitar acidentes devido às brincadeiras ou brigas comuns entre irmãos. Certa
vez, empurrei a minha irmã, que estava na borda da piscina, visando apenas
dar um susto nela, mas não saiu como o planejado. A intenção era que ela caísse
perto da borda da piscina, próximo da escada e, desta forma, ela poderia voltar
para a beira da piscina de novo. Em vez disso, a força empregada foi tamanha
que ela caiu na parte profunda da piscina. Ela não gritava, pois já estava se
afogando. Quem gritou por ajuda fui eu que percebi logo a bobagem que fizera.
Eu sabia nadar, mas fiquei paralisado sem saber o que fazer. Ainda tenho este
receio de entrar em água, se for para ajudar alguém que está se afogando.
Talvez tenha sido deste evento que ocorreu com a minha irmã no Clube Náutico
que fica na Avenida Beira-Mar de Fortaleza, local que a gente frequentava
quando a nossa tia conseguia uma cortesia para levar seus sobrinhos para
passear aos finais de semana.
Em outra oportunidade, a brincadeira, se podemos definir desta
forma, era jogar sandálias um no outro e o objetivo era se esquivar como
acontecia nas histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, quando a Mônica
arremessava o seu coelhinho de pelúcia e o Cebolinha tentava desviar, ou nos
desenhos animados que passavam nos programas de TV quando eram comuns jogar
objetos uns nos outros, como nas brigas de gatos e ratos, Pica Pau contra o
Leão Marinho. Quando a
minha irmã atirou a sandália na vez dela, consegui desviar com certa
facilidade, talvez ela tenha conseguido me acertar em algumas outras
oportunidades. Você já pode imaginar o que aconteceu quando foi a minha vez.
Ainda bem que o primeiro arremesso errei, mas iria bater na cabeça dela. A
sandália quebrou-se contra a parede devido a intensidade da energia aplicada.
Por causa da ingenuidade, continuamos brincando e quando joguei pela segunda
vez, a sandália do outro pé, acertou na perna dela. Imediatamente, ela soltou
um grito pavoroso de dor. Esta outra sandália começou a ser destruída já na
perna da minha irmã e terminou seu desmonte ao colidir contra a parede. Por
sorte, o projétil passou lateralizando da perna esquerda dela, abaixo do
joelho. Não sei como, mas ela não quebrou nenhum osso. Em vez disso, arrancou
parte da pele da perna e teve que ser levada ao pronto-socorro. Precisou ficar
usando curativo por um bom tempo e tomar antibióticos que ela detestava e, na
maioria das vezes, vomitava por não gostar do sabor.
Cada vez mais, meus pais ficavam preocupados,
porque à medida que a minha força aumentava, os acidentes ficavam mais graves.
Estava jogando bola em um calçamento no bairro Beira Rio, local que havíamos
mudado recentemente, depois que os meus pais terem vivido seus primeiros anos
de casados no bairro São João do Tauape próximo ao Lagamar. Em um determinado momento do jogo, chutei o chão, em vez da bola,
até porque, futebol nunca foi o meu forte, despedaçando uma pedra de calçamento
um pouco mais saliente, arremessando com uma enorme força e velocidade um
pedaço de pedra que se tivesse pegado em alguém, com certeza, teria
transfixado. O fragmento
de pedra atingiu uma caixa transformadora em um poste ocasionando um grande
barulho e foi este motivo que muitos não conseguiram associar o acidente ao meu
chute. Desta vez, comecei a ficar mais preocupado e já entendia que seria mais
sensato me afastar das pessoas para evitar maiores transtornos.
Adultez
Seria esperado que eu me tornasse um super-herói
ou mesmo que tivesse utilizado este dom, ou poder em benefício próprio. Em vez
disso, escondi por este tempo. Não consigo compreender ter algo que é
diferente totalmente da humanidade lá fora. Sem lógica para mim. Como irei
explicar? Com quem poderei debater sobre o meu dia a dia? Ninguém pode
entender. Irei me transformar em um deus para a maioria deles e isto não
desejo. Não me sinto à vontade de ser superior somente devido a um dom.
Sei que muitas pessoas são idolatradas devido
algumas características, mas o meu caso é diferente. Algumas pessoas são
aclamadas, porque são cantoras, mas, na maioria das vezes, se não emplacarem
sucessos seguidos, caem no esquecimento. Outros, são grandemente ovacionados,
porque são grandes jogadores de algum esporte, mas em breves anos se aposentam
sendo esquecidos gradativamente. Por outro lado, eu sempre serei poderoso.
Prefiro a paz da minha consciência. Não quero
parecer soberbo, acima de ninguém. Acredito que este excesso de força foi
indevidamente colocado sob a minha responsabilidade ou, quiçá, fui
deliberadamente sorteado para guardar este precioso dom. Talvez Deus ou
qualquer outra força superior, soubessem qual seria o meu comportamento e
quisessem esconder este poder da mão de qualquer outra pessoa na Terra.
Sempre estou avaliando os meus comportamentos ou
pensamentos. Posso estar equivocado em tudo o que penso. Porventura, posso
decidir usar esta minha força para salvar alguém, e pronto, ou fazer shows
demonstrando feitos nunca realizados pelo homem, como a capacidade de levantar
um caminhão acima da cabeça, usando apenas a força de um ser humano. Não sei o
que pode acontecer daqui para frente que mude os meus ideais. Acredito que a
humildade possa ser uma característica minha que pode estar inibindo de
usufruir deste talento. A minha prudência pode estar se questionando se este
excesso de força é algo positivo ou negativo para a minha vida. É melhor evitar
ter filhos que possam herdar esta mutação, pois não desejo que ninguém sofra.
Não sei precisar como será a minha atitude no futuro como já mencionara, mas a
decisão de saber se agi corretamente ou não, dependerá de quando for avaliado
ou por quem.
Algumas perguntas ficam sem respostas mesmo. Até
agora, o ser humano concluiu ser importante formular perguntar e tentar
responder. Pois é, tentar responder e, algumas vezes, a resposta que serviu
perfeitamente, inicialmente, encontra-se equivocada nas diversas esquinas do
tempo. No meio do relativismo, ainda podemos nos questionar se sabemos
perguntar. Este é um dos questionamentos mais intrigantes da raça humana
vigente. Talvez se a gente conseguir ultrapassar algumas destas respostas,
poderemos nos sobrelevar como espécie animal, supra sapiens, com o
desenvolvimento de características sobre-humanas, impensáveis até este momento.
Presentemente, o meu dom poderia, talvez, ser
útil e, por enquanto, fico apenas como um rei deposto que tem um olho em uma
terra de cegos.
24.01.2024
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