quarta-feira, 31 de julho de 2024

DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DO SUS: DAS GRANDES METRÓPOLES AOS POVOS TRADICIONAIS BRASILEIROS (SBPC AFRO E INDÍGENA)

Como representante da Federação Médica Brasileira-FMB e vice-presidente de um Sindicato Médico, tenho a necessidade de compreender as diversas ramificações do Sistema Único de Saúde-SUS, incluindo a necessidade de infraestrutura adequada e adaptada para populações específicas nas diferentes regiões do Brasil Continental.

O SUS é o principal local de trabalho do Médico Brasileiro e, desta forma, é necessário que este profissional esteja preparado para as demandas e desafios deste sistema. O primeiro obstáculo encontrado é a dificuldade de gerir unidades de saúde pelos gestores municipais devido a diversos fatores como inexperiência e falta de conteúdo técnico inerente à pasta da saúde. Como consequência, é comum a carência de materiais básicos como computador, prontuário eletrônico que interligue os diversos setores da unidade de saúde e da secretaria de saúde, assim como um dimensionamento equivocado do número de profissionais para as unidades de saúde. Outros pontos que dificultam o devido acompanhamento da saúde da população é a dificuldade de realizar exames de diferentes tipos assim como conseguir a medicação básica para o acompanhamento das principais doenças entremeadas na nossa população. O tripé problemático do SUS que será o norteador desta reflexão: gerenciamento-profissionais-infraestrutura.

Nas cidades é mais fácil de observar a dificuldade do acesso à saúde pela população. Mesmo existindo diversas unidades de saúde espalhadas pelos diferentes bairros da cidade, disponibilidade de transporte público e ruas pavimentadas, a população enfrenta falta de vagas para consultas com os profissionais, dificuldade de marcar retorno para as consultas, demora para a realização de exames, falta de estoque programado de medicamentos básicos para os programas e ausência de uma equipe multidisciplinar que garanta autonomia para a população cadastrada em um posto. Este é o retrato constante das unidades de saúde dos diversos municípios do país. O que acontece quando fatores geográficos, culturais, históricos, políticos são colocados neste debate? Precisamos nos aprofundar nestes assuntos para podermos compreender e elaborar estratégias para as populações indígena e negra.

Para atendimento adequado da população negra é importante assimilar algumas realidades. A escolaridade da mãe é o primeiro fator de relevância na mortalidade infantil e o segundo é a raça; 29% da população negra no Brasil nunca foi ao dentista ou não consulta um profissional há mais de três anos; o “exame da orelhinha” ou Triagem Auditiva Neonatal–importante para detectar possíveis problemas de audição nos recém-nascidos, cerca de 24,2% das crianças negras não fizeram o exame em contraponto aos 12% de crianças brancas.

A Hipertensão Arterial Sistêmica-HAS e o Diabete Mellitus-DM representam duas doenças que são grandes causas de morbimortalidade no Brasil, afetando em especial a população negra. A HAS tem relação genética em 30 a 40% dos casos, sendo causa de 12 a 14% de mortes. É mais prevalente em homens e negros.

A DM é mais prevalente em negros, sendo a quarta causa de morte geral e a principal de cegueira. A frequência é de 9% a mais em homens negros e 50% maior em mulheres negras do que brancas.

Um aspecto determinante do acesso à saúde pela população negra é a territorialidade. A dinâmica das cidades favorece a centralização da população branca, enquanto a negra se organiza mais na periferia. A distância geográfica do acesso ao serviço é exacerbada quando se considera que a rotatividade dos profissionais é maior nestas localidades.

A população indígena apresenta uma maior necessidade logística para o acesso da saúde: censo de 2022 demonstra um aumento de 84% desta população (1.652.876 indígenas); grande diversidade, abrangendo 305 grupos étnicos e 274 idiomas; em 2020, 766.519 pessoas indígenas cadastradas nos 51 Distritos Sanitários Especiais Indígenas-DSEI, média de 15 mil pessoas por DSEI; seus hábitos alimentares, dificuldade do acesso à comida levam à insegurança alimentar; questões relacionadas à saúde mental e o uso crescente de medicamentos psicotrópicos, elevado consumo de álcool; taxa de suicídio, 21,8 por 100 mil habitantes em 2014, ser quatro vezes maior que a população brasileira, em geral; a mortalidade infantil é maior que dos outros grupos populacionais.

Como uma amostra da complexidade do atendimento da população indígena é importante entender que o uso de álcool entre os povos indígenas tem diversos efeitos, tanto positivos–como práticas tradicionais ancestrais em contextos rituais, mediação política de conflitos grupais, festividades, atividades laborais–quanto negativos–como processos de desagregação social e familiar e desarticulação das comunidades.

Como a Federação Médica Brasileira-FMB e seus sindicatos médicos de base podem ajudar no enfrentamento destes desafios? 

Adaptar uma equipe multidisciplinar para atender uma população exige várias competências. Não é suficiente apenas construir paredes, arrumar cadeiras em volta de uma mesa de atendimento e disponibilizar uma maca para exame físico. É necessário ouvir e capacitar os profissionais para compreender as diferenças de costumes, comportamentos, crenças e saber conviver e dialogar com as diferenças que afloram no convívio humano. De todas as habilidades importantes para o sucesso do acesso à saúde adequado da nossa população a mais importante é capacidade do gestor de um município, do estado ou mesmo de um secretário de saúde de saber gerenciar uma pasta tão complexa como da saúde de forma racional e responsável, valorizando as necessidades inerentes da população e o respeito ao trabalho dos profissionais da saúde.

A FMB e seus sindicatos de base têm a preocupação constante de ouvir a categoria Médica e pautar os gestores públicos na mediação de problemas que afligem o trabalho Médico e o atendimento de qualidade da nossa população. Na medida que a complexidade do atendimento da saúde aumenta com o crescente interesse para o atendimento dos povos tradicionais, a FMB se mobiliza para acompanhar de perto dos profissionais Médicos nesta jornada contribuindo para o incremento de políticas públicas da saúde e beneficiando o devido acesso à saúde da multifacetada e gigante população brasileira.

obs: Resumo da minha apresentação que faz parte dos Anais da 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC em Belém-PA.

terça-feira, 30 de julho de 2024

O SACA-ROLHAS E A GARRAFA DE VINHO

Em uma casa viviam vários seres animados e inanimados. Dentre os objetos que não deveriam expressar sentimentos, existiam alguns que não sabiam pensar, conjecturar e ousar e o faziam mesmo assim. Os diversos instrumentos da casa eram utilizados em diferentes momentos pelos seres animados ou vivos, poderíamos assim dizer, a depender do período em que se encontravam de um ano ou de um singelo dia. Dentre estes se destacavam o saca-rolhas, as garrafas de vinho e um filtro de água.

Indubitavelmente, o saca-rolhas gostava do seu trabalho: após pedir permissão atropeladamente, subitamente, já estava transfixando a rolha e expulsando-a de uma garrafa que escravizava o vinho. O saca-rolhas sentia-se como um libertador, um herói, ainda que não soubesse a definição deste ato.

Certa vez, em um dia mais ensolarado, ao libertar mais um vinho das garras da escravidão de uma rolha opressora, o saca-rolhas procurou conversar com o vinho que se apresentava à sua frente trazendo alegria, ora tristeza para os seres animados que insistiam em ingerir ou escravizá-los em seus corpos.

Saca-rolhas: Olá, depois de tanto tempo libertando seres como você, gostaria, por obséquio, de conhecê-los melhor.

Vinho tinto: Não me importo em descrever-me para ti. Sou um vinho tinto derivado das uvas desta região. Tenho um sabor apurado, mas existem aqueles que rejeitam o meu toque. Posso causar euforia e iniciar grandes paixões, assim como posso ser o prelúdio de uma tragédia. Tenho o poder da sedução e da beleza oculta nas diversas notas que emergem do meu ser.

O saca-rolhas ficou embevecido com tamanhas palavras cheias de vigor e certezas. Seus olhos brilhavam ao se abrir um mundo de possibilidades e encantos com aquelas sentenças que demostravam uma dureza amenizada por um charme adocicado.

Saca-rolhas: Fale mais sobre ti, tens família?

Vinho tinto: Família? Tenho, mas não tenho. Tenho alguns irmãos como o vinho branco, espumante e um bastardo vinho verde. Temos a mesma essência, mas por vários motivos precisamos nos diferenciar para conquistar diferentes paladares. Nasci primeiro e servi de exemplo para os outros. Sou vendido como um presente dos deuses, trago a alegria imediata e a descontração absoluta. Estimulo orgias, brigas e desconstruções. Apesar de todo o peso das consequências dos meus atos, existem milhões que ainda me defendem. Se braço tivesse, arrancaria as penas de uma galinha e ela ainda viria comer o milho nas minhas mãos. Se arma pudesse carregar, mataria aqueles que pensam contra mim. Seria o defensor da liberdade de todos e prenderia quem fosse contra. Ajudo a destruir os conceitos que orientam o mundo a nossa volta. A família, a nação, propriedade privada, a fé em um Deus são conceitos que atrapalham a minha marcha para uma transformação da sociedade. Somente consigo enganar os fracos de espírito, jovens que ainda não tiveram a oportunidade de viver uma vida de desafios e conquistas por mérito. Consigo ludibriar as pessoas de que o mais importante é o agora e que, portanto, não vale a pena construir. Construir é cansativo, mais gostoso é destruir. A adrenalina das pessoas fica à flor da pele quando sorvem o meu néctar. Inquestionavelmente, sou viciante. Como vício, tem as consequências, mas não precisamos falar sobre isto porque o que importa é o agora. Começo a ser apresentado nas escolas e tenho meu apogeu nas faculdades. Cada vez mais que as famílias não conseguem estar ao lado dos seus filhos, mas entro nas realidades dos jovens o que me ajuda a perpetuar a minha existência.

O saca-rolhas continuava perplexo com tanta agitação e beleza. Por ficar a maior parte do tempo dentro de uma gaveta, não conseguia imaginar tantas cores e convulsões possíveis em um discurso tão magnânimo. Era um momento deveras alegre.

Neste momento, a garrafa foi levada para o outro compartimento da casa. O saca-rolhas não veria mais o seu furtivo amigo para continuar a sua conversa. Gostou desta nova possibilidade de poder dialogar e ouvir as experiências e a magia entremeada nas incontáveis frases ditas ao vento. Cada vez mais, se empolgava para retirar as rolhas que prendiam estes seres tão maravilhosos para aprender mais.

Até que um dia, o saca-rolhas percebeu que há semanas não saía da gaveta. Algumas vezes, observava que algum outro utensílio era retirado próximo a ele. Nunca mais teve o prazer de perfurar uma rolha e tagarelar com aqueles líquidos tão maravilhosos. De repente, ele foi retirado e jogado em uma pia que ficava no meio da cozinha da casa. Em sua volta, algumas colheres e facas que não sabiam o que tinha acontecido. Este cenário ficou estável por dias até que o saca-rolhas sentindo-se entediado, busca iniciar um bate papo com as coisas que estavam quietas e imóveis. Ninguém responde.

Após uma semana, começa crescer uma sensação ruim a tal ponto que começaram a escorrer umas gotas que pareciam água da ponta do seu cabo. Ao ouvir o choro do saca-rolhas, o filtro de água que não conseguia mais ficar calado pergunta:

Filtro de água: O que aconteceu?

O saca-rolhas ouviu a indagação, mas ainda estava triste demais para responder, então o filtro de água retrucou:

Filtro de água: Percebi que você está chorando. Entendo que se você não quiser conversar, posso deixar você em paz. De qualquer modo, estarei aqui se você desejar contar um pouco o que está acontecendo.

Passaram dias, semanas e, finalmente, o saca-rolhas não aguentando, arremessou uma palavra quase inaudível:

Saca-rolhas: ...Oi!

O filtro de água, percebendo a timidez do saca-rolhas, responde em um tom ameno.

Filtro de água: Olá! Como tu estás? Ficou calada tanto tempo, imaginei que tu estavas mergulhada nos teus pensamentos e, por isto, não quis incomodar.

Saca-rolhas: Você fala palavras tão bonitas também.

Filtro de água: Eu? Obrigado! E quem falava palavras bonitas também?

Saca-rolhas: O vinho, principalmente, o tinto.

Filtro de água: Ah, o vinho...

Neste momento, o saca-rolhas percebe uma mudança da voz do filtro de água e pergunta:

Filtro de água: Você também conhece o vinho?

Filtro de água: Bem, nunca entrou vinho dentro de mim, apenas água, mas conheço longas histórias do vinho.

O saca-rolhas neste momento, literalmente, pula de alegria caindo próximo ao filtro.

Saca-rolhas: Conte-me das estórias do vinho. Gostava muito de ouvir. Se pudesse, teria vivido todas as aventuras e glórias que ele me descrevia: revoluções, pessoas felizes, igualdade o quer que isto seja.

Filtro de água: Como te disse, somente água entrou em mim. Do vinho, bem...do vinho conheço como começa cada história com alegria, sensação de renovação, muita paixão, mas o fim sempre é trágico.

Saca-rolhas: O que é trágico?

Filtro de água: Trágico é quando acontece algo ruim.

Saca-rolhas: É ficar triste depois de estar feliz?

Filtro de água: Isso mesmo.

Saca-rolhas: Fiquei muito triste depois que deixei de tirar rolhas e salvar o vinho que ficava preso na garrafa. Sempre o vinho conversava comigo, contando maravilhas que aconteciam quando bebiam dele.

Filtro de água: Pois é, difícil de falar sobre isto para você.

Saca-rolhas: Por quê?

Filtro de água: Como você tem boas lembranças dele, não imagina quanta dor ele pode trazer. Você teria que estar preparado para escutar o lado trágico do vinho e tirar suas decisões depois. Não quero estragar os teus sonhos.

Saca-rolhas: Conte-me tudo, não sabia que poderiam existir este lado trágico do vinho.

Filtro de água: No começo, o vinho é bom, agradável. Ao passar do tempo, ele exige mais tempo e consome a pessoa. O indivíduo não consegue trabalhar, precisa viver de favor das outras pessoas consumindo seu tempo. O vinho ensina que as pessoas que têm dinheiro e posses são más e que deveriam doar tudo para os que não trabalham. O vinho estimula o roubo para que as pessoas possam ter como comprar mais vinho. O vinho destrói a pessoa e toda a comunidade onde ele entra.

Saca-rolhas: Que triste!

Filtro de água: Existe alguém que ajuda a combater a maldade do vinho, principalmente o tinto, que é a água. Esta mesma que ficava em mim e que ajudava a saciar a sede das pessoas sem exigir ou causar dor nelas. As pessoas que ingerem do vinho, sempre tem que recorrer à água para curar das feridas causadas pelo consumo. Infelizmente, a maioria das pessoas voltam a consumir o vinho de tempos em tempos esquecendo todo o mal que este pensamento causou na humanidade ao longo da história. Aliás, foi por causa do vinho que o dono desta casa perdeu tudo, restando somente nós nesta casa abandonada sem perspectivas do futuro.

O saca-rolhas ficava olhando o filtro falar, mas com um olhar vago sem entender o que o filtro estava querendo dizer. Quando percebia que o filtro estava um pouco mais sério, pensava que seria melhor não ter tirado as rolhas da garrafa para livrar aquele ser tão trágico, mas bastava passar alguns dias e o saca-rolhas já ficava imaginando aparecer uma nova garrafa de vinho para que ele tirasse a rolha e continuasse o seu devaneio.

25.06.24

 

Transpoema - A menina (trans)formada

Mari transpira transformação.

Qualquer transeunte que transpasse o seu caminho transubstancializa-se

Permite-se transmitir a transvanguarda e questionar a transculturação.

 

A transparência da sua transitoriedade

Transverbera o trans ordinário

Transfigura os conceitos e preconceitos de verdade

Se engaja com o transumano incendiário.

 

Transfixa a parede transportada da mediocridade

Transtroca a mente perversa que transcura[AB1]  em um mar transitável de esperança

É um verbo intransitivo de uma transa sem maldade.

 

Não é sobre o prefixo “trans”, é mais para um transe suave

É a respeito e muito respeito de quem transcreve sobre a transcendência

Sobre Mari que voa no transcurso da humanidade como uma ave

É a paz de uma transfusão de amor para uma enrijecida essência.

 

24.06.24

Obs: enviado dia 30.06 para a Antologia da Sobrames-CE.