Em
uma casa viviam vários seres animados e inanimados. Dentre os objetos que não
deveriam expressar sentimentos, existiam alguns que não sabiam pensar,
conjecturar e ousar e o faziam mesmo assim. Os diversos instrumentos da casa
eram utilizados em diferentes momentos pelos seres animados ou vivos,
poderíamos assim dizer, a depender do período em que se encontravam de um ano
ou de um singelo dia. Dentre estes se destacavam o saca-rolhas, as garrafas de
vinho e um filtro de água.
Indubitavelmente,
o saca-rolhas gostava do seu trabalho: após pedir permissão atropeladamente,
subitamente, já estava transfixando a rolha e expulsando-a de uma garrafa que
escravizava o vinho. O saca-rolhas sentia-se como um libertador, um herói,
ainda que não soubesse a definição deste ato.
Certa
vez, em um dia mais ensolarado, ao libertar mais um vinho das garras da
escravidão de uma rolha opressora, o saca-rolhas procurou conversar com o vinho
que se apresentava à sua frente trazendo alegria, ora tristeza para os seres
animados que insistiam em ingerir ou escravizá-los em seus corpos.
Saca-rolhas:
Olá, depois de tanto tempo libertando seres como você, gostaria, por obséquio, de
conhecê-los melhor.
Vinho
tinto: Não me importo em descrever-me para ti. Sou um vinho tinto derivado das
uvas desta região. Tenho um sabor apurado, mas existem aqueles que rejeitam o
meu toque. Posso causar euforia e iniciar grandes paixões, assim como posso ser
o prelúdio de uma tragédia. Tenho o poder da sedução e da beleza oculta nas
diversas notas que emergem do meu ser.
O
saca-rolhas ficou embevecido com tamanhas palavras cheias de vigor e certezas.
Seus olhos brilhavam ao se abrir um mundo de possibilidades e encantos com
aquelas sentenças que demostravam uma dureza amenizada por um charme adocicado.
Saca-rolhas:
Fale mais sobre ti, tens família?
Vinho
tinto: Família? Tenho, mas não tenho. Tenho alguns irmãos como o vinho branco,
espumante e um bastardo vinho verde. Temos a mesma essência, mas por vários
motivos precisamos nos diferenciar para conquistar diferentes paladares. Nasci
primeiro e servi de exemplo para os outros. Sou vendido como um presente dos
deuses, trago a alegria imediata e a descontração absoluta. Estimulo orgias,
brigas e desconstruções. Apesar de todo o peso das consequências dos meus atos,
existem milhões que ainda me defendem. Se braço tivesse, arrancaria as penas de
uma galinha e ela ainda viria comer o milho nas minhas mãos. Se arma pudesse
carregar, mataria aqueles que pensam contra mim. Seria o defensor da liberdade
de todos e prenderia quem fosse contra. Ajudo a destruir os conceitos que
orientam o mundo a nossa volta. A família, a nação, propriedade privada, a fé
em um Deus são conceitos que atrapalham a minha marcha para uma transformação
da sociedade. Somente consigo enganar os fracos de espírito, jovens que ainda
não tiveram a oportunidade de viver uma vida de desafios e conquistas por
mérito. Consigo ludibriar as pessoas de que o mais importante é o agora e que,
portanto, não vale a pena construir. Construir é cansativo, mais gostoso é
destruir. A adrenalina das pessoas fica à flor da pele quando sorvem o meu
néctar. Inquestionavelmente, sou viciante. Como vício, tem as consequências,
mas não precisamos falar sobre isto porque o que importa é o agora. Começo a
ser apresentado nas escolas e tenho meu apogeu nas faculdades. Cada vez mais
que as famílias não conseguem estar ao lado dos seus filhos, mas entro nas
realidades dos jovens o que me ajuda a perpetuar a minha existência.
O
saca-rolhas continuava perplexo com tanta agitação e beleza. Por ficar a maior
parte do tempo dentro de uma gaveta, não conseguia imaginar tantas cores e
convulsões possíveis em um discurso tão magnânimo. Era um momento deveras
alegre.
Neste
momento, a garrafa foi levada para o outro compartimento da casa. O saca-rolhas
não veria mais o seu furtivo amigo para continuar a sua conversa. Gostou desta
nova possibilidade de poder dialogar e ouvir as experiências e a magia
entremeada nas incontáveis frases ditas ao vento. Cada vez mais, se empolgava
para retirar as rolhas que prendiam estes seres tão maravilhosos para aprender
mais.
Até
que um dia, o saca-rolhas percebeu que há semanas não saía da gaveta. Algumas
vezes, observava que algum outro utensílio era retirado próximo a ele. Nunca
mais teve o prazer de perfurar uma rolha e tagarelar com aqueles líquidos tão
maravilhosos. De repente, ele foi retirado e jogado em uma pia que ficava no
meio da cozinha da casa. Em sua volta, algumas colheres e facas que não sabiam
o que tinha acontecido. Este cenário ficou estável por dias até que o saca-rolhas
sentindo-se entediado, busca iniciar um bate papo com as coisas que estavam
quietas e imóveis. Ninguém responde.
Após
uma semana, começa crescer uma sensação ruim a tal ponto que começaram a
escorrer umas gotas que pareciam água da ponta do seu cabo. Ao ouvir o choro do
saca-rolhas, o filtro de água que não conseguia mais ficar calado pergunta:
Filtro
de água: O que aconteceu?
O
saca-rolhas ouviu a indagação, mas ainda estava triste demais para responder,
então o filtro de água retrucou:
Filtro
de água: Percebi que você está chorando. Entendo que se você não quiser
conversar, posso deixar você em paz. De qualquer modo, estarei aqui se você
desejar contar um pouco o que está acontecendo.
Passaram
dias, semanas e, finalmente, o saca-rolhas não aguentando, arremessou uma
palavra quase inaudível:
Saca-rolhas:
...Oi!
O
filtro de água, percebendo a timidez do saca-rolhas, responde em um tom ameno.
Filtro
de água: Olá! Como tu estás? Ficou calada tanto tempo, imaginei que tu estavas mergulhada
nos teus pensamentos e, por isto, não quis incomodar.
Saca-rolhas:
Você fala palavras tão bonitas também.
Filtro
de água: Eu? Obrigado! E quem falava palavras bonitas também?
Saca-rolhas:
O vinho, principalmente, o tinto.
Filtro
de água: Ah, o vinho...
Neste
momento, o saca-rolhas percebe uma mudança da voz do filtro de água e pergunta:
Filtro
de água: Você também conhece o vinho?
Filtro
de água: Bem, nunca entrou vinho dentro de mim, apenas água, mas conheço longas
histórias do vinho.
O
saca-rolhas neste momento, literalmente, pula de alegria caindo próximo ao
filtro.
Saca-rolhas:
Conte-me das estórias do vinho. Gostava muito de ouvir. Se pudesse, teria
vivido todas as aventuras e glórias que ele me descrevia: revoluções, pessoas
felizes, igualdade o quer que isto seja.
Filtro
de água: Como te disse, somente água entrou em mim. Do vinho, bem...do vinho
conheço como começa cada história com alegria, sensação de renovação, muita
paixão, mas o fim sempre é trágico.
Saca-rolhas:
O que é trágico?
Filtro
de água: Trágico é quando acontece algo ruim.
Saca-rolhas:
É ficar triste depois de estar feliz?
Filtro
de água: Isso mesmo.
Saca-rolhas:
Fiquei muito triste depois que deixei de tirar rolhas e salvar o vinho que
ficava preso na garrafa. Sempre o vinho conversava comigo, contando maravilhas
que aconteciam quando bebiam dele.
Filtro
de água: Pois é, difícil de falar sobre isto para você.
Saca-rolhas:
Por quê?
Filtro
de água: Como você tem boas lembranças dele, não imagina quanta dor ele pode
trazer. Você teria que estar preparado para escutar o lado trágico do vinho e
tirar suas decisões depois. Não quero estragar os teus sonhos.
Saca-rolhas:
Conte-me tudo, não sabia que poderiam existir este lado trágico do vinho.
Filtro
de água: No começo, o vinho é bom, agradável. Ao passar do tempo, ele exige
mais tempo e consome a pessoa. O indivíduo não consegue trabalhar, precisa
viver de favor das outras pessoas consumindo seu tempo. O vinho ensina que as
pessoas que têm dinheiro e posses são más e que deveriam doar tudo para os que
não trabalham. O vinho estimula o roubo para que as pessoas possam ter como
comprar mais vinho. O vinho destrói a pessoa e toda a comunidade onde ele
entra.
Saca-rolhas:
Que triste!
Filtro
de água: Existe alguém que ajuda a combater a maldade do vinho, principalmente
o tinto, que é a água. Esta mesma que ficava em mim e que ajudava a saciar a
sede das pessoas sem exigir ou causar dor nelas. As pessoas que ingerem do
vinho, sempre tem que recorrer à água para curar das feridas causadas pelo
consumo. Infelizmente, a maioria das pessoas voltam a consumir o vinho de
tempos em tempos esquecendo todo o mal que este pensamento causou na humanidade
ao longo da história. Aliás, foi por causa do vinho que o dono desta casa
perdeu tudo, restando somente nós nesta casa abandonada sem perspectivas do
futuro.
O
saca-rolhas ficava olhando o filtro falar, mas com um olhar vago sem entender o
que o filtro estava querendo dizer. Quando percebia que o filtro estava um
pouco mais sério, pensava que seria melhor não ter tirado as rolhas da garrafa
para livrar aquele ser tão trágico, mas bastava passar alguns dias e o saca-rolhas
já ficava imaginando aparecer uma nova garrafa de vinho para que ele tirasse a
rolha e continuasse o seu devaneio.
25.06.24
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