segunda-feira, 23 de julho de 2018

Conto Os Caminhos do Ceará



Esta história começa no final dos anos 50, quando o Ceará era um estado com, aproximadamente, 2 700 000 habitantes que viviam as aventuras e desventuras de um povo amável, trabalhador e resiliente em uma terra árida, com 99% do seu território em pleno sertão. Ao final da tarde, o terceiro filho do seu Júlio, com oito anos de idade, ia tangendo jumentos para transportar mangas que foram colhidas nos dias anteriores para o mercado São Sebastião, no centro de Fortaleza, distante 40Km, a pé. Acordava empolgado porque, como era o único que ajudava nas despesas da casa, recebia um alimento mais reforçado, mas, na maioria das vezes, somente, havia para beber uma meia xícara de café para suportar a jornada. Ele morava em uma região afastada do centro de Aquiraz, Sítio do Marquês, divisa do distrito, que, posteriormente, iria se emancipar em 1987, Eusébio.
A família do seu Júlio gostava de contar as histórias dos seus antepassados e valorizar seu solo. Com muito orgulho, referem que a primeira casa do Ceará que fica por trás da Igreja da Sé, ainda, pertence a família no centro de Aquiraz. Os aquirazenses têm orgulho de narrar a história de sua bela Aquiraz que no começo foi criada como vila em 1699 e, a partir de 1713, tornou-se a capital da então capitania do Siará Grande até o ano de 1726, quando a capital foi transferida para Fortaleza.
O trabalho era exaustivo, mas o único recurso que havia na época nesta pobre região para conseguir algum sustento. Era mês de novembro, época das mangas, quando era possível presenciar a formação de um tapete rosa amarelo de mangas que repousavam no chão aos montes. Era necessário recolher as frutas de melhor qualidade para encher os caçuás dos dez jumentos que percorreriam todo o percurso acompanhado de dois homens que faziam a negociação com os vendedores que aguardavam a mercadoria. Cada caçuá tinha a capacidade de levar cem mangas e cada jumento levava dois caçuás pendurados nas cangalhas. Eram duas mil mangas para serem transportadas de cada vez. Saíam ao final da tarde, quando o sol estava mais ameno e percorreriam uma longa jornada até chegar na única parada do caminho onde hoje se situa o viaduto da Raul Barbosa que atravessa a BR-116 para tomar uma xícara de café com meio pão d’água, aproximadamente, às 4h ; era um momento de grande alegria devido a fartura de comida para aquele faminto e esguio garoto.
Após um breve descanso, continuam a jornada até o Mercado Central que fica situado próximo à atual Avenida da Bezerra de Menezes, na época coberta por calçamento. O filho do seu Vicente aguardava a venda de todas as frutas que durava até às 6h da manhã quando voltava para casa com previsão de chegada para às 15h. Quando não era época de manga, também, fazia transporte de maxixe ou feijão-verde, dependendo da colheita. Cada viagem rendia o equivalente a meio litro de feijão e de farinha, cem gramas de café e de açúcar.
Os filhos do seu Júlio, diariamente, procuravam outras formas para se alimentar como caçar preás e cassacos, pescar no Rio Pacoti, pegar caranguejo ou, pelo menos, aratus para fazer um caldo quando a pescaria não era suficiente para a família. Costumeiramente, contam um episódio de forma jocosa quando ao retornar de uma pescaria malsucedida, encontraram um cacho de bananas e ficaram extasiados. Como estavam muito famintos, comeram algumas bananas que, ainda, estavam verdes com casca para poder aproveitar ao máximo a refeição e não desperdiçar nada. Após ficarem satisfeitos, notaram que o restante das bananas estavam maduras, mas não conseguiam mais comer, pois todos estavam saciados de tanto comer banana verde com casca.
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Agosto, é uma época de festa na cidade de Várzea Alegre, distante 92 km de Juazeiro do Norte, na região do Cariri, que se destaca pela produção de arroz há décadas, quando é celebrado, há mais de 162 anos, o padroeiro da cidade, São Raimundo Nonato. As filhas do seu Vicente adoravam estes tempos festivos. Esqueciam o luto vivido pela família quando o pai, envolvido com alcoolismo e jogos, perdeu todas as posses das terras que lhe restava. Em um chão seco e sem vida, a posse de um terreno, significava um ativo que poderia ser vendido, mesmo que a preços vis, em uma grande estiagem, que era comum de acontecer no centro do único estado do Brasil, totalmente, inserido no sertão nordestino. As filhas do seu Vicente começaram a sonhar em fugir para uma terra sonhada, banhado pelo mar, dunas brancas e rico de possibilidades chamada Fortaleza.
Moldada pela astúcia dos antepassados dos varzealegrenses, uma das filhas do seu Vicente busca o sustento negociando todo e qualquer objeto que pudesse despertar interesse nas pessoas. Desenvolveu um espírito fraterno e amigo que buscava a amizade para conseguir vender seus produtos e formar uma carta de clientes fiéis.
O medo do fracasso e da miséria assolavam seus pensamentos. A dor da privação, da fome, eram cicatrizes que ardiam em suas têmporas. Não suportaria apresentar este mundo para seus futuros filhos. Sim, sonhava ter uma família, crianças robustas, bem alimentadas, coradas, estudiosas para poder passar em uma faculdade e se formar, era um projeto de longo prazo. Estudar em um colégio que garantisse a qualidade de estudos era fundamental. Se dispunha a ser faxineira de um grande colégio particular para poder acompanhar o desenvolvimento intelectual dos seus filhos. Acordava cedo, sem sono, disposta e, depois de um preenchido dia de trabalho de boas ou más vendas, além do emprego de secretária de uma escola primária, dormia entremeada pelos capítulos das novelas que era o seu único passatempo. Nunca sabia do desfecho das telenovelas, já que, não conseguia permanecer desperta para assistir a todas as cenas, um inconstante despertar e adormecer durante a programação devido o dia laborioso e a própria virtude de conseguir iniciar o sono logo ao deitar.
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O filho do seu Júlio conheceu e se apaixonou pela filha do seu Vicente na ensolarada capital do Ceará. Nos primeiros anos, se deleitavam nas suas inúmeras praias de águas quentes, algumas vezes traiçoeiras como as ondas da beira-mar que quase afogaram o filho do seu Júlio quando este, desejando mostrar sua masculinidade e virilidade, ousou desafiar a força incomensurável do Oceano Atlântico que banha o norte do estado, particularmente, da Praia do Náutico, em um dos espigões que já existiam na década de 80 para tentar evitar o avanço do mar nos belos calçadões dos arredores da Volta da Jurema.
Havia alegrias da família constituída, mas as decepções não programadas de um relacionamento temperavam suas convivências. Todas as experiências e exemplos vividos ao longo dos seus anos estavam em conflito no matrimônio. O nascimento dos filhos, permitiu a formação de um vínculo forte, afetivo e um propósito além das suas necessidades circunstanciais. Ao mesmo tempo, era possível galgar conquistas financeiras discretas, mas constantes, como a aquisição da primeira casa própria. Neste momento, todo o passado de carência financeira se extinguia e começavam a viver em um mundo que seria impossível há alguns anos.
A história deste casal refletida se assemelhava ao deste bonito e sofrido estado do Ceará. Períodos de chuva e sol, terra seca marrom com ar seco que arde nas narinas em contraste com um mato molhado em período de inverno de agradável aroma. Céu azul sem nuvens que fazem a festas dos turistas nas aprazíveis Praias de Jericoacoara, Pecém, Cumbuco, Beberibe e do tempo nublado que traz esperança e alegria para os agricultores que assistem o renascer dos rios como o Jaguaribe e açudes como o de Quixadá, aos pés da Galinha Choca, e do magnífico Orós.
Os filhos do casal assistiram inocentes o choque de mundos tão diversos e egocêntricos que se confrontavam. A ruptura deste seio familiar foi o debut destas crianças que iriam percorrer não as mesmas estradas dos seus pais, mas um caminho de dificuldades que seriam transpassadas pela fé inerente ao povo cearense.
Fortaleza, 27.04.18
Faz parte da antologia da Sobrames nacional 2018

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