Esta história começa no final dos anos 50, quando o Ceará
era um estado com, aproximadamente, 2 700 000 habitantes que viviam as
aventuras e desventuras de um povo amável, trabalhador e resiliente em uma
terra árida, com 99% do seu território em pleno sertão. Ao final da tarde, o
terceiro filho do seu Júlio, com oito anos de idade, ia tangendo jumentos para
transportar mangas que foram colhidas nos dias anteriores para o mercado São
Sebastião, no centro de Fortaleza, distante 40Km, a pé. Acordava empolgado
porque, como era o único que ajudava nas despesas da casa, recebia um alimento
mais reforçado, mas, na maioria das vezes, somente, havia para beber uma meia
xícara de café para suportar a jornada. Ele morava em uma região afastada do centro
de Aquiraz, Sítio do Marquês, divisa do distrito, que, posteriormente, iria se
emancipar em 1987, Eusébio.
A família do seu Júlio gostava de contar as histórias dos
seus antepassados e valorizar seu solo. Com muito orgulho, referem que a
primeira casa do Ceará que fica por trás da Igreja da Sé, ainda, pertence a
família no centro de Aquiraz. Os aquirazenses têm orgulho de narrar a história
de sua bela Aquiraz que no começo foi criada como vila em 1699 e, a partir de
1713, tornou-se a capital da então capitania do Siará Grande até o ano de 1726,
quando a capital foi transferida para Fortaleza.
O trabalho era exaustivo, mas o único recurso que havia
na época nesta pobre região para conseguir algum sustento. Era mês de novembro,
época das mangas, quando era possível presenciar a formação de um tapete rosa
amarelo de mangas que repousavam no chão aos montes. Era necessário recolher as
frutas de melhor qualidade para encher os caçuás dos dez jumentos que
percorreriam todo o percurso acompanhado de dois homens que faziam a negociação
com os vendedores que aguardavam a mercadoria. Cada caçuá tinha a capacidade de
levar cem mangas e cada jumento levava dois caçuás pendurados nas cangalhas.
Eram duas mil mangas para serem transportadas de cada vez. Saíam ao final da
tarde, quando o sol estava mais ameno e percorreriam uma longa jornada até
chegar na única parada do caminho onde hoje se situa o viaduto da Raul Barbosa
que atravessa a BR-116 para tomar uma xícara de café com meio pão d’água,
aproximadamente, às 4h ; era um momento de grande alegria devido a fartura de
comida para aquele faminto e esguio garoto.
Após um breve descanso, continuam a jornada até o Mercado
Central que fica situado próximo à atual Avenida da Bezerra de Menezes, na
época coberta por calçamento. O filho do seu Vicente aguardava a venda de todas
as frutas que durava até às 6h da manhã quando voltava para casa com previsão
de chegada para às 15h. Quando não era época de manga, também, fazia transporte
de maxixe ou feijão-verde, dependendo da colheita. Cada viagem rendia o
equivalente a meio litro de feijão e de farinha, cem gramas de café e de
açúcar.
Os filhos do seu Júlio, diariamente, procuravam outras
formas para se alimentar como caçar preás e cassacos, pescar no Rio Pacoti,
pegar caranguejo ou, pelo menos, aratus para fazer um caldo quando a pescaria
não era suficiente para a família. Costumeiramente, contam um episódio de forma
jocosa quando ao retornar de uma pescaria malsucedida, encontraram um cacho de
bananas e ficaram extasiados. Como estavam muito famintos, comeram algumas
bananas que, ainda, estavam verdes com casca para poder aproveitar ao máximo a
refeição e não desperdiçar nada. Após ficarem satisfeitos, notaram que o
restante das bananas estavam maduras, mas não conseguiam mais comer, pois todos
estavam saciados de tanto comer banana verde com casca.
·
Agosto, é uma época de festa na cidade de Várzea Alegre,
distante 92 km de Juazeiro do Norte, na região do Cariri, que se destaca pela
produção de arroz há décadas, quando é celebrado, há mais de 162 anos, o
padroeiro da cidade, São Raimundo Nonato. As filhas do seu Vicente adoravam
estes tempos festivos. Esqueciam o luto vivido pela família quando o pai,
envolvido com alcoolismo e jogos, perdeu todas as posses das terras que lhe restava.
Em um chão seco e sem vida, a posse de um terreno, significava um ativo que
poderia ser vendido, mesmo que a preços vis, em uma grande estiagem, que era
comum de acontecer no centro do único estado do Brasil, totalmente, inserido no
sertão nordestino. As filhas do seu Vicente começaram a sonhar em fugir para
uma terra sonhada, banhado pelo mar, dunas brancas e rico de possibilidades
chamada Fortaleza.
Moldada pela astúcia dos antepassados dos
varzealegrenses, uma das filhas do seu Vicente busca o sustento negociando todo
e qualquer objeto que pudesse despertar interesse nas pessoas. Desenvolveu um
espírito fraterno e amigo que buscava a amizade para conseguir vender seus
produtos e formar uma carta de clientes fiéis.
O medo do fracasso e da miséria assolavam seus
pensamentos. A dor da privação, da fome, eram cicatrizes que ardiam em suas
têmporas. Não suportaria apresentar este mundo para seus futuros filhos. Sim,
sonhava ter uma família, crianças robustas, bem alimentadas, coradas,
estudiosas para poder passar em uma faculdade e se formar, era um projeto de
longo prazo. Estudar em um colégio que garantisse a qualidade de estudos era
fundamental. Se dispunha a ser faxineira de um grande colégio particular para
poder acompanhar o desenvolvimento intelectual dos seus filhos. Acordava cedo,
sem sono, disposta e, depois de um preenchido dia de trabalho de boas ou más
vendas, além do emprego de secretária de uma escola primária, dormia entremeada
pelos capítulos das novelas que era o seu único passatempo. Nunca sabia do
desfecho das telenovelas, já que, não conseguia permanecer desperta para
assistir a todas as cenas, um inconstante despertar e adormecer durante a
programação devido o dia laborioso e a própria virtude de conseguir iniciar o
sono logo ao deitar.
·
O filho do seu Júlio conheceu e se apaixonou pela filha
do seu Vicente na ensolarada capital do Ceará. Nos primeiros anos, se
deleitavam nas suas inúmeras praias de águas quentes, algumas vezes traiçoeiras
como as ondas da beira-mar que quase afogaram o filho do seu Júlio quando este,
desejando mostrar sua masculinidade e virilidade, ousou desafiar a força
incomensurável do Oceano Atlântico que banha o norte do estado,
particularmente, da Praia do Náutico, em um dos espigões que já existiam na
década de 80 para tentar evitar o avanço do mar nos belos calçadões dos
arredores da Volta da Jurema.
Havia alegrias da família constituída, mas as decepções
não programadas de um relacionamento temperavam suas convivências. Todas as
experiências e exemplos vividos ao longo dos seus anos estavam em conflito no
matrimônio. O nascimento dos filhos, permitiu a formação de um vínculo forte,
afetivo e um propósito além das suas necessidades circunstanciais. Ao mesmo
tempo, era possível galgar conquistas financeiras discretas, mas constantes,
como a aquisição da primeira casa própria. Neste momento, todo o passado de
carência financeira se extinguia e começavam a viver em um mundo que seria
impossível há alguns anos.
A história deste casal refletida se assemelhava ao deste
bonito e sofrido estado do Ceará. Períodos de chuva e sol, terra seca marrom
com ar seco que arde nas narinas em contraste com um mato molhado em período de
inverno de agradável aroma. Céu azul sem nuvens que fazem a festas dos turistas
nas aprazíveis Praias de Jericoacoara, Pecém, Cumbuco, Beberibe e do tempo
nublado que traz esperança e alegria para os agricultores que assistem o
renascer dos rios como o Jaguaribe e açudes como o de Quixadá, aos pés da
Galinha Choca, e do magnífico Orós.
Os filhos do casal assistiram inocentes o choque de
mundos tão diversos e egocêntricos que se confrontavam. A ruptura deste seio
familiar foi o debut destas crianças
que iriam percorrer não as mesmas estradas dos seus pais, mas um caminho de
dificuldades que seriam transpassadas pela fé inerente ao povo cearense.
Faz parte da antologia da Sobrames nacional 2018
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