quinta-feira, 22 de abril de 2021

Conto O diabo não é o culpado!

 

O diabo não é o culpado!

O costume de encontrar desculpas para tudo o que acontece de errado é uma prática inerente do ser humano. É semelhante ao instinto de sobrevivência. Se algo não sair como o planejado, Roberta já começa a explicar todos os detalhes do incidente, independente que aconteça em casa ou no trabalho, defendendo que ela não teve culpa. Não há lembranças dela assumindo o erro de qualquer eventualidade adversa, mas de tudo que deu certo, foi a primeira a se apresentar como a mãe da ideia. Roberta vivia assim sem constrangimentos. Se o seu filho falava alguma palavra imprópria, corrigia-o imediatamente apesar dela ser um dicionário vivo de palavrões, já que não conseguia terminar uma frase sem ter dito pelo menos uma palavra torpe. Se um funcionário errasse, ela era a primeira a se levantar e apontar para o culpado. Os colaboradores da empresa se preocupavam mais em esconder os problemas, que ocorriam dentro do ambiente de trabalho, da Roberta que do próprio gerente administrativo, seu chefe. Não obstante, o inesperado independe de desculpas.

Roberta acordou em ambiente muito claro, como um grande quarto branco e podia se notar que não havia paredes, não havia chão. Ela não estava sentindo medo por estar em uma paragem tão incomum. Naquele momento, Roberta sabia de nada, nada mesmo. Situação análoga a um sonho que não faz sentido, mas que não é questionado. Tudo era muito real. Aos poucos conseguia definir duas figuras que parolavam sem parar. Ela nota que eles estão se aproximando dela paulatinamente. Dissertam sobre infindáveis assuntos, desde astrofísica até a cor da maçã, sempre em discordância. Por fim, param de grulhar e observam a presença incólume de Roberta. Olham através do seu corpo, conseguindo enxergar toda a história dela e todas as consequências decorridas dos seus atos. A presença deles é angustiante, sufocadora, todavia serena. Começam a falar, novamente, olhando para ela, aumentando o tom cada vez mais e acelerado. Roberta procura entender o que eles dialogam, pois, é muito provável, que estão falando dela ou para ela já que a olham e gesticulam compulsivamente. Percebe que estão julgando-a, avaliando seus atos do passado e decidindo se ela deveria ir para o inferno ou para o céu. Inúmeros atos da sua vida que ela nem se lembrava mais são exprimidos. Eram tantas divagações, percepções inusitadas de uma vida que estava sendo acompanhada dia a dia de uma forma ostensiva. Todos os milésimos de segundos eram como décadas de uma passagem fugaz na terra onde todo o olhar, aperto de mão e fios de cabelo que ficavam em sua escova estavam sendo acompanhados. Sabiam muito mais dela do que ela mesma. Conheciam muito mais, pois eram capazes de avaliar as consequências de todos os seus atos através dos anos. 

Quando acabou o namoro com o seu primeiro namorado, este conheceu uma mulher para poder esquecer dela. Manteve relações sem preservativo, sendo acometido de doenças venéreas que o incapacitaram de gerar filhos.  Ela não tinha a intenção de ser má, mas, na maioria das vezes, a ação era deveras inoportuna. Certa vez, ao encontrar um saco com dinheiro, sentiu-se muito feliz, com muita sorte. Naquele momento, não percebeu que havia um homem desesperado procurando este saco com dinheiro, pois iria pagar a dívida que o filho fez com um traficante, que era viciado em crack, e era a sua última oportunidade de fazer o pagamento. O pai não encontrou o dinheiro, estava em débito com vários agiotas e não possuía mais nada para poder vender para salvar o seu único filho. Depois disto, restou aguardar desesperado, em frente ao poço sem fim da desesperança, o aviso que encontraram o seu filho morto cravejado de balas em um matagal próximo.

Roberta também foi reconhecida pelos seus feitos de bondade e resultados benéficos semeadas na humanidade. Constantemente, costumava atravessar a cidade onde morava para ir encontrar uma tia-avó que vivia em um asilo onde somente três anciãos recebiam visitas: a tia-avó da Roberta, e dois senhores que passaram a receber a atenção dos seus parentes quando Roberta divulgou em sua página virtual sobre o asilo e a situação de penúria que se encontravam estas pessoas. Roberta não conhecia esta tia-avó, nunca havia ouvido falar dela, mas, ao fazer um projeto para a sua empresa, teve que entrar no abrigo para idosos para solicitar alguns documentos e, após várias idas e vindas, cafés com bolacha e sabendo das inúmeras histórias que aquele local preservava, foi surpreendida com a notícia de uma parente esquecida por todos. A partir de então, a visitava frequentemente, conversava bastante, chorava e ria com a anciã, apesar da incapacidade desta de diálogo subtraído pela demência interposta há anos.

A decisão foi tomada de forma drástica – Roberta deveria ir para o inferno. Suas ações em vida a condenaram.

Roberta sentiu um frio na barriga. Sabia que era muito tempo para tanto suplício. Pediu a palavra para fazer alguns questionamentos. Os dois homens, após longa espera, aceitaram a ouvir. Roberta disse que sua vida sempre foi atormentada. Não tinha bom relacionamento com seus pais por que eles não a entendiam, era brigada com seus irmãos por que eles eram egocêntricos e nunca procuraram ajuda-la, todos os relacionamentos eram conturbados por que os homens são difíceis de conviver além de serem machistas. Em qualquer ambiente que estivesse sempre havia alguma pessoa que não gostava dela gerando fofocas, discussões. Ela sentia que era perseguida pelas pessoas. Ela não frequentava igrejas, pois acreditava que Deus estava consigo de qualquer modo e culpava o diabo devido o flagelo vivido em vida.

Os dois seres postos em sua frente entreolham-se sem esboçar sentimentos. As palavras dela ecoaram no nada. Uma das figuras, em um gesto de misericórdia derradeira, explica morosamente, os motivos do seu julgamento. O livre arbítrio concedido a ela foi indevidamente utilizado. Ela poderia ter feito o bem em todos os momentos da sua vida, mas por narcisismo preferiu agir para o benefício próprio sem se preocupar com as sequelas. Nos seus inúmeros relacionamentos e nos casamentos, não procurava manter um ambiente de tranquilidade, entender as limitações do próximo, buscar apoio em grupos de casais e, como consequência, o divórcio foi frequente. Sempre Roberta chorava muito, amargurada com as separações colocando culpa no diabo pela sua infelicidade. Ela estava prestes a noivar com o seu primeiro namorado, com reais planos para um casamento, mas quando soube que seu futuro noivo ficou desempregado, não conseguiu aceitar expor o seu relacionamento para a sociedade ao lado de um derrotado. Ela não respeitava os seus pais, não tinha prazer de visita-los e isto tinha reflexo na convivência o com seu filho que preferia ficar com o pai. Até o gesto de frequentar o asilo tinha objetivos outros que era de tentar angariar parte dos bens da sua tia-avó quando esta morresse.

Os passos largos para a terra da besta eram largos e angustiantes. Conseguia ver algumas pessoas na terra que estavam cometendo seus mesmos erros. Em uma atitude súbita, altruística, solicita a permissão de voltar para o convívio dos seus parentes para poder alertá-los das consequências deletérias dos seus atos nocivos, mas seus julgadores são precisos nas suas palavras. Afirmam que por diversas vezes, enviaram homens e mulheres para precaver a humanidade do resultado de uma vida libidinosa e evitar o lago de fogo e enxofre. Estes loucos ou profetas como eram chamados, foram torturados e mortos pelos indivíduos que eles desejavam salvar. A ida de Roberta seria desnecessária.

Ela inicia sua derradeira caminhada. O calor e a sede começam a tomar conta do seu semblante de ruína. Ela sabia que o inferno existia nas piadas, nas vozes esquecidas dos cristãos, mas não entendia a possibilidade da sua existência. O principal dor será o arrependimento. Muitas vezes sentiu remorso após um ato indevido, mas não o suficiente evitar de repetir o mesmo erro por diversas vezes posteriormente. Roberta errou, sofreu, gozou, viveu, morreu foi para o tormento eterno e, desta vez, o diabo não é o culpado, mas agradece o esforço dela para estar na sua companhia.

Fortaleza, 02.06.18

(atualizado em 02.06.18)

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